José Silva Cardoso Órfão
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me José Silva Cardoso Órfão, nasci na Rua Mocidade da Arrábida,
freguesia de Lordelo do Ouro, no Porto, em 16 de Janeiro de 1939. Sempre vivi
na Arrábida.
Lordelo do Ouro foi uma zona industrial. Havia a Fábrica dos Fósforos, onde a
minha mãe trabalhou 43 anos, a Secil, a Alumínia, a Luís Gonçalves e Irmão,
uma fundição que agora está em Valongo e à qual chamávamos o "Cara de
Homem", a Fábrica de Lanifícios de Lordelo do Ouro, o Azevedo, que era uma
fábrica de tintos, a Adira, o Cardoso. A Adira e o Cardoso, ambos na Rua Bessa Leite, ainda sobrevivem. Não vejo mais nenhuma fábrica em
funcionamento.
Na zona da Arrábida moravam os trabalhadores dessas fábricas. Havia muitos
antifascistas. O meu pai era fundidor, encarregado. Um dia andaram atrás dele,
mas não chegou a ser preso. Foi para o Fundão, para as Minas da Panasqueira, onde esteve seis meses. Era um bom profissional mas
tuberculizou. Acabou a carreira a trabalhar em casa, num barraquito.
Na Fábrica dos Fósforos trabalhavam por empreitada, ao despique, a encher
caixas de fósforos. Algumas operárias queimaram a cara toda. A minha mãe
não, era cautelosa. Andei na escola primária dos protestantes, na Escola Evangélica de Lordelo do Ouro. Deve ter sido ideia do meu pai. Fiz exame da 1ª à 4ª sem vestir farda
da Mocidade Portuguesa. Tenho o 4º ano industrial completo de montador
electricista, da Escola Infante D. Henrique. Mas comecei a ajudar o meu pai e
um primo picheleiro logo a seguir à 4ª. classe. Oficialmente, comecei a
trabalhar aos 14 anos. Estudava à noite, na Escola Infante D. Henrique.
Trabalhei até aos 23 anos em muitas firmas - era quem me pagasse mais. E eu
tinha mau feitio...Algumas empresas não me deixaram estudar. "Você tem uma
opção: ou emprego ou escola". Respondia-lhes: "Afinal, vocês querem um
trabalhador desenvolvido ou querem um tacanho e analfabeto?".
Cheguei a frequentar o 5ª ano do curso de electricista. Até que um dia, aos 23
anos, em boa ou má hora, um padre, o Padre Cabral da Infante D. Henrique,
me perguntou por que é que eu chegava tarde às aulas. Menti-lhe, disse-lhe
que chegava tarde porque andava a arranjar emprego. "Você quer trabalhar?".
Quero trabalhar se for para a minha profissão, agora para servente ou trolha,
não. Deu-me uma carta e, no dia seguinte, vou com essa carta à Alumínia.
"Você está disposto a pegar amanhã às 8 horas?". O coração encheu-se-me de
alegria - fui ganhar 23 escudos por dia, como electricista. A minha mulher
andava grávida, fazia-me jeito um bom emprego. Casámo-nos, eu com 24
anos, ela com 17, já ia de sete meses. Era operária têxtil e comia o pão que o
Diabo amassou: morava num barraco em Aldoar. Veio a ser delegada sindical
na Fábrica de Malhas Tentativa.
Actividade Profissional
Na Alumínia trabalhava por turnos, das 7 às 16 horas ou das 16 à 1 hora da
noite. Fui sofrido. Também ia fazer serviços a casa do patrão, Gaspar Cabral, e
recebia sempre 20 escudos e um frango.
Quando fui para a Alumínia ainda se trabalhava ao sábado até às 17 horas.
Depois veio a semana inglesa, saíamos ao meio-dia. Mas tínhamos de fazer
bicha para receber o salário. Como éramos 500 empregados e um só
funcionário a pagar-nos, saía-se de lá depois das 14 horas. Desgraçadas
daquelas senhoras que ainda tinham de ir às compras ao Bom Sucesso ou ao
Bolhão. Eu, puto reguila, deixava a correr a minha secção e era o 4º ou o 5º (a
receber). Domingo, pesca; sábado, Carlos Alberto - pagava-se 25 tostões.
Um dia, houve uma avaria na minha secção e também me calha a mim ter de
esperar. Estavam na bicha uns colegas que deviam estar organizados em
partidos e sabiam do meu feitio. Disse-me um deles: "Vamos lá acima à
administração?". Não tenho nada a perder, vamos lá. "Tu falas?". Falo. E, em
seis meses, era a apoteose, ali, certinho! Isso passou-se em 1966. Fi-lo sem
consciência política, era instintivo.
Houve mais lutas na Alumínia e uma greve em 1972. Houve vários "balões",
também. "Balão" era um despedimento colectivo de 100 trabalhadores. Depois,
quando havia muito trabalho, iam buscar os despedidos. Eu escapei a todos
os "balões". Se me têm mandado embora, iria para a Câmara Municipal do Porto, pois ficara em 1º. lugar num exame para electricista no Gás e
Electricidade. Mas, quando pus a faca ao peito do Cabral, ele deu-me mais 8
escudos de aumento por dia. Era muito dinheiro para a época, aí por volta de
1968. Ganhava-se mais cá fora do que na Função Pública. A greve de 1972 está muito mal contada, já ouvi várias versões. Ninguém foi
preso. O Cabral era da Acção Nacional, mas o patrão espanhol era anti-
franquista. A greve de 1972 foi assim: nós, electricistas, não tínhamos força,
éramos só quatro. E não tínhamos nada a ver com a greve dos metalúrgicos,
pertencíamos a sindicatos diferentes. Os electricistas ganharam a luta logo no
primeiro dia. Fui ter com o chefe, o Inácio, e disse-lhe: "Ó meu amigo, há aí
uma greve dos trabalhadores". "Já sei. E vocês, electricistas, em que situação
estão?". "Nós queremos o que eles querem". Queríamos um feriado à escolha
- os metalúrgicos gozavam o 1º de Maio -, dois contos de aumento e o
subsídio de Natal por inteiro. Os patrões tinham umas panelas de pressão que
ficaram mal feitas e pretendiam desfazer-se delas. Por exemplo, se eu ia
receber dois contos no Natal - naquela altura já pagavam o 13ª mês -, davam-
me um conto e uma panela. Ninguém queria as panelas. Eu era um revoltado,
chego com um papel quadriculado - ainda lá tenho a fotocópia -, reivindicamos
isto, aquilo, mais aquilo, mais as diuturnidades. "Se vos dermos o que os
metalúrgicos querem, vocês vão trabalhar?" Eu não tinha alternativa. Mostrei
aos outros electricistas o papel assinado. Decidiram retomar o trabalho. Mas eu
nunca larguei a greve, estive sempre solidário com os metalúrgicos.
Na greve de 1972 na Alumínia houve muito radicalismo entre os metalúrgicos, os
tais extremismos que já existiam na época. Nós, electricistas, fomos um
bocado mal entendidos, mas depois tudo veio a esclarecer-se.
Actividade Sindical
Lembro-me bem das eleições para o Humberto Delgado. Era novo, vi colegas
meus caírem, serem empurrados pela PIDE em frente ao Infante Sagres. Para
nós era uma festa, a PIDE vir e fugirmos deles. Sabíamos lá o perigo em que
estávamos metidos. Nunca fui preso, mas levei algumas marteladas. Toda a
gente era a favor do Humberto Delgado. Depois do 25 de Abril, mais maduros,
já íamos "feitinhos". Sem vinculação partidária, mas eu já tinha simpatia pelo
Partido Comunista, porque lia o "Avante". Havia um senhor Meneses na
Arrábida que mo vendia. E havia também o Picado, preso várias vezes pela
PIDE. Cheguei a ter medo dele. Quando íamos para a pesca, aos domingos,
ele punha-se lá, nos blocos de Matosinhos, a ler o Avante para mim. O
Picado conversava muito comigo e até colaborei na subscrição para o pedido
de libertação do Dias Lourenço.
Nunca fui apanhado com o Avante. Ainda tenho lá um livro que esteve
enterrado quatro ou cinco anos. Era "a fábrica da rua sem nome". Está muito
mal estimado porque a terra comeu-o um bocado. E cheguei a deitar
documentos a um poço para os guardar.
Estive quase a ser mobilizado para a guerra, se fosse fugia para França. Mas
como era baixo, não tinha estatura para soldado. Depois, começaram a
mobilizar todos - gordos, magros, pequenos, mancos. A minha cunhada
arranjou-me então emprego numa fábrica de concentrado de tomate em França
e um "passador" (para passar a fronteira). Para a guerra é que não ia. Já havia
alguma consciencialização da minha parte. Quando se deu o 25 de Abril fui o
primeiro da Alumínia a sair para a rua. Eram 10,30.
Depois do 25 de Abril fui eleito para a direcção do Sindicato dos Electricistas e,
a seguir, para a Federação dos Metalúrgicos e dos Têxteis, também. Andei
sete anos por fora, estive em Lisboa, entre federações. Sempre eleito pela
minha classe. Sempre eleito democraticamente pelos trabalhadores das
empresas. Sou do Partido Comunista e andava de autocolante ao peito, nunca
me excluí.
A Alumínia fechou há coisa de 4 anos. Mal nos disseram que a Alumínia ia ser
vendida aos americanos, fui - como dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos - a
uma reunião com a administração, "amordacei" os delegados sindicais, que
não sabiam dizer nada, e perguntei aos administradores: "Há bago para toda a
gente?". Garantiram-me: "Não se fica a dever um tostão a ninguém". As
indemnizações vieram. Se o desmembramento da Alumínia era um facto
consumado, se ia ser destruída, só quem fosse muito burro é que iria
desencadear um conflito laboral.
Estive na Alumínia uma data de anos amarrado à banca sem me darem uma
peça de ferramenta para trabalhar e cheguei a estar discriminado 13 contos em
relação ao meu ajudante, a quem ensinara a trabalhar. Meti uma acção em
tribunal contra a empresa e ganhei.
Actividade Associativa
Fui dirigente da ARUP (Associação Recreativa e Cultural da Arrábida) vários
anos. Quando fiz 18 anos - mal sabia eu que eram antifascistas-, disseram-me:
"Pá, tu eras pedrinha boa para a colectividade. És trabalhador e estudante. Dás
bem na caneta". Eu gostava da pesca e eles também. Como íamos todos os
domingos para Matosinhos às taínhas, introduzi-me muito cedo no meio dos
velhos. Um deles, o tal Picado, chamava-me "o reguila".
Naquela altura na ARUP eram só idosos e "20 riscos" (jogo da sueca). Cultura
não. Deixei aquilo e, mais tarde, arranjei um grupo de jovens, rapazes e
raparigas. Iam para lá dançar - afastava-os de vícios. Durou cerca de ano e
meio. A seguir organizámos futebol de salão para crianças. Ganharam vários
torneios. Depois vieram os adultos, que jogavam no pavilhão do Infante de Sagres. Acho que essas actividades continuam. Agora quem está a subir de
divisão é a Mocidade da Arrábida. Está lá gente boa.
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