José de Oliveira Alegre
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me José de Oliveira Alegre, nasci a 22 de Fevereiro de 1932, em Matosinhos. O
meu pai era pescador e dos nove irmãos que nós éramos todos estivemos ligados ao
mar, todos na pesca. Excepto a minha irmã, que é a mais velha e foi para o Brasil.
Aos 14 anos fiz a 4ª classe, a seguir, em 1944 e 1945, fiz dois anos de escola de pesca e
depois fui para o mar, trabalhar.
Os meus filhos não seguiram a vida de pescador porque é uma escravatura e arranjaram
outro modo de vida.
Actividade Profissional
Eu, se pudesse, também não tinha ido para o mar porque eu tenho muito medo do mar,
tenho muito respeito, mas naquele tempo era assim, havia muitos filhos e todos, ainda
pequenos, iam para o mar. As mulheres normalmente eram "fabricantas", ou seja,
trabalham nas fábricas de conserva.
No meu segundo ano de pesca, tinha 16 ou 17 anos, vi morrer cento e cinquenta e tal
pescadores: quatro traineiras que foram ao fundo e morreu tudo. Eu safei-me, mas nunca
mais esqueci a noite do dia 1 para 2 de Dezembro de 1947...
Nessa altura não havia as condições de trabalho que há hoje, quer dizer, não havia
aparelhos que nos ajudassem a andar no mar. Só tínhamos um prumo de mão para
conhecer os fundos. Muitas vezes não sabíamos se estávamos a ir para norte ou sul, nem
sabíamos onde andávamos...
Era uma vida muito dura, uma escravidão! A gente não tinha sábados, domingos, dias
santos, não tinha nada, não tinha regalias nenhumas, podíamos ir dez ou quinze dias ao
mar e se não pescássemos não ganhávamos um tostão. Não havia subsídios de lado
nenhum, passávamos fome muitas vezes. Quando chegava o defeso, terminada a safra
da sardinha, era um problema, ninguém tinha dinheiro, não se conseguia poupar nada, e
ainda tínhamos de ver se pagávamos o que devíamos do ano anterior.
Trabalhávamos todos os dias e depois chegávamos a terra e tínhamos que limpar as
redes, quer fizesse sol ou chuva, encascá-las nos armazéns, que era escaldá-las em
água quente, e depois deixavam-se a escorrer de um dia para o outro. E muitas vezes
vínhamos do mar e íamos outra vez estender a rede ao bordeiro para secar e recolher
outra.
No Inverno toda a gente tinha de se amarrar a bordo, todos os dias, se fosse preciso 24
ou 48 horas, por quartos, com 9 ou 10 homens, conforme as tripulações a bordo. Umas
vezes era quarto a dobrar, se eram quarenta homens dividiam-se em oito, oito vezes 5
quarenta, se fosse quarto a dobrar, em vez de irem 5 iam 10, facilitava mais alguma
coisa...
Era uma vida mesmo de escravo, de manhã à noite a tirar 1500 cabazes, 1700, 1800, e
depois a acartar descalços, todos molhados, só com uma camisa e calças de ganga
vestidas, a arrastar cabazes por aquela lingueta acima.
Os mestres iam para casa comer, beber, dormir e passear, e os escravos ficavam ali de
manhã à noite a tirar o peixe. E eles ainda vinham e perguntavam "Vocês ainda não
tirastes o peixe?" e davam ordens para o queimar com petróleo! Era assim, para não
baixar o preço. Mesmo que as pessoas quisessem levar para comer não podiam,
queimava-se com petróleo para ninguém lhe pegar!
Depois, fui para a tropa e só voltei com 24 anos. Em 1958, com 26 anos, casei-me, tirei a
carta de mestre e nasceu o meu filho, tudo no mesmo ano. A carta de mestre valeu-me de
muito para melhorar a minha vida porque fui para um arrastão de pesca e na pesca do
arrasto já havia outras condições: havia um ordenado e havia a percentagem. Ora, a
gente sabia que se andasse ao mar o ordenado era pouco, mas com a percentagenzita e
uns peixitos que se traziam para casa, já dava um jeitão... Na pesca do arrasto já se trazia
toda a qualidade de peixe, mas estas embarcações com redes de emalhar deram cabo de
tudo. Custa-me dizer isto, mas é verdade, estes homens deram cabo do peixe todo,
destruíram a costa toda, o peixe fica emalhado nas redes, fica preso. Não se
incomodavam com isso, o que queriam era trazer peixe porque tinham uma percentagem.
A vida na pesca da sardinha era uma roubalheira, recebíamos 10 escudos de caldeirada,
dizia-se assim, mas tínhamos de ir ao mar e trazer o peixe. Na pesca do arrasto, depois
de pagas as despesas, 50% era para o patrão, e os outros 50% dividia-se por todos. Mas
era muito pouco. Acabavam por nos dar aquilo que queriam e lhes apetecia e... "bico
calado, senão vais para a rua". Não tínhamos direitos nenhuns, depois é que se lutou por
isso. Alguns lutavam, que outros tiveram sempre medo, medo de perder o trabalho ou ir
presos pela PIDE, como alguns foram.
Actividade Social e Política
Eu fui sempre um homem que o que tinha a dizer dizia. Uma vez, em 1982, fomos à
Assembleia da República porque eles queriam que todo o trabalhador português pagasse
um retroactivo a partir de Janeiro e já estávamos em Junho ou Julho e como é que os
pescadores podiam pagar, se não tinham ordenado? Foi no tempo do Mário Soares e a
maior parte dos deputados não sabia nada de pesca, não percebia nada. Mas nessa
altura já tínhamos a liberdade de dizer o que pensávamos e eu estava no Sindicato dos
Pescadores e ia a Lisboa, defender os nossos direitos e exigir outras condições para a
nossa vida.
Mas antes do Sindicato se formar, já havia uma Associação de Pescadores, a Mútua de Pescadores que nasceu há cerca de 30 anos, nos anos 70, em Matosinhos. Formou-se com pescadores
que queriam ter os seus direitos e pagavam uma quota pequenina, para o seguro e outras
regalias.
Em 1984 entrei para a direcção da Mútua e durante 12 anos estive na Afurada a trabalhar
entre o Sindicato e a Mútua, isto foi quando eles quiseram tirar a Mútua aos
pescadores e pôr lá uma Comissão Administrativa. Fui a muitas reuniões, a correr de um
lado para o outro e sempre a ir ao mar, até que em 1997 tive um ataque do coração e fui
para o hospital e em 2000 tive de deixar o Sindicato.
Mesmo antes do 25 de Abril, já havia muita força dos pescadores, muitas lutas e até
greves. Lembro-me que em 1975 fizemos 38 dias de greve para termos direito a um
horário de trabalho porque antes íamos para o mar quando o patrão mandava. Era chegar
do mar, encharcados, cheios de fome, tirar o peixe, tratar das redes e eles vinham e
diziam "É pessoal, às 5 horas!". E nós, sem descanso lá tínhamos que aguentar e
obedecer, para no fim conseguirmos umas migalhas. Fizemos greve e conseguimos o
descanso semanal. Hoje em dia também há outras regalias. A saída é à meia-noite,
menos ao domingo que é às 10 horas e quando não se vai ao mar, no defeso. Este ano
os pescadores tiveram, pela primeira vez, direito a um subsídio que pode ir dos 15 ou 20
contos até aos 50 ou 60, pelo defeso todo, que é dado pelo Fundo do Desemprego. Antes do 25 de Abril também tínhamos problemas por causa das redes e das patrulhas...
Andavam sempre em cima de nós, vinham as patrulhas num barco de guerra, chegavam
ali "Vira a rede para dentro" por causa da malhagem do saco e a gente o que tinha
pescado perdia tudo. Pronto, era logo paralisação um dia ou dois que era para nos
perguntarem de Lisboa porque é que os arrastões estavam parados. E alguém tinha que
responder e um dia eu disse ao Comandante da Capitania de Leixões "Ó senhor
Comandante, os barcos não vão sair" E então ele disse que o problema era nosso. "Não
senhor Comandante, o senhor é que vai ter que responder para Lisboa, o senhor é que é
o capitão do porto". Queria-me mandar para a cadeia, mas não mandou.
A maior luta que tivemos foi com a pesca do arrasto. Havia muita participação dos
pescadores, mas havia também aqueles mestres e armadores que chamavam as
companhas ao armazém e atemorizavam-nos "Se não queres trabalhar vais-te embora!"
Muitos, coitados, tinham medo. Nessas situações, a gente juntava-se nas passagens para
bordo, às horas de embarcar, e não deixava passar ninguém. E esta última greve que
houve agora, aqui em Matosinhos, por causa do arrasto, também foi precisamente assim,
foi-se aguentando, aguentando, mas alguns, claro, 2 meses ou mês e meio sem trabalhar,
sem dinheiro... Até se arranjou bacalhau, massa e tudo para dar aos mais necessitados
mas... "partiu". Mas para os patrões também foi um grande "tombo", com aqueles navios
todos paralisados.
Muitos pescadores também não compreendem bem que têm de estar segurados, para a
Mútua poder ajudar. Isto é assim, a maior parte das embarcações pequeninas estão lá na
Mútua dos Pescadores, fazem o desconto através da lota, conforme vão pescando vão
descontando para chegar ao fim do ano e estar paga a quota. Depois os salários
calculam-se com base no desconto, nestas ocasiões em que há um sinistro qualquer, ou
paragem obrigatória, o salário que recebem é correspondente ao que descontaram.
Eu com os meus patrões fui-me dando sempre bem e quando o meu patrão vendeu os
barcos todos, em 1982, também vendeu o barco onde eu trabalhava, o "Rosande", mas
eu chamei o Presidente do Sindicato e toda a tripulação e resolveu-se tudo. Fomos
indemnizados e toda a gente concordou.
Para além dos seguros e dos apoios, a Mútua tem feito cursos de formação profissional,
tipo socorrismo, as primeiras assistências no mar para os pescadores. Na Afurada, fui lá o
organizador disso tudo e preferi que fossem os mestres das embarcações a fazer esses
cursos. Andaram lá oito dias e estavam a ganhar 50 contos e já foi bom para eles.
O Bairro onde vivo desde 1949 foi construído pela Junta Central da Casa dos
Pescadores, juntamente com outros organismos, e no princípio era só para pescadores.
Depois as coisas começaram a mudar: alguns já não gostam de viver aqui, junto com os
pescadores, e vão embora, outros, que não são pescadores, arranjaram forma de vir para
cá... Depois também havia problemas porque, por exemplo, se a casa estava em nome de
um pescador que falecia, os filhos não a podiam herdar... Mas eu resolvi esse problema,
porque fomos viver para a casa dos meus pais, que, ainda em vida, a passaram para o
meu nome. Agora já está em nome dos meus dois filhos. Mas já há muita "mistura", isto
agora já não é dos pescadores, há aqui de tudo.
A pesca está a acabar em Matosinhos, acabando estes mestres... essa rapaziada da
Afurada e alguns nas Caxinas... Isto vai-se degradando cada vez mais. Isto é assim, é a
vida.
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