Alípio Rodrigues da Cruz
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me Alípio Rodrigues da Cruz e nasci a 26 de Maio de 1917 em São Pedro da Cova,
na rua que agora tem o nome de Manuel Sousa Matos. A
minha mãe era daqui e era doméstica, e o meu pai era de Espinho e a arte dele
era tanoeiro. O meu pai conheceu a minha mãe em São Pedro da Cova. Ele era
solteiro mas ela tinha enviuvado no Brasil e já tinha cinco filhos. Os meus pais
sabiam fazer umas continhas mas não sabiam ler. Os filhos aprenderam a 1ª
classe.
Casei-me quando ia para os 18 anos e a minha mulher tinha 17. Fiquei a viver
em casa da minha sogra até começarem a vir filhos. Foram 3 e eu tive de
arranjar uma casinha porque já não tinha condições para lá morar. Arranjei
uma casinha que tinha só um quarto, uma salinha onde fazíamos sala de
jantar, dormida e tudo, e uma cozinha em chapa que era fora. Não havia casa
de banho. Quando chegávamos a casa para comer o bocadinho da broa, era à
luz da candeia que não havia electricidade no meu tempo. Nem água havia.
Era a Fonte da Telha. E se era para ir buscar o carvão, ia uma comitiva buscá-
lo às Mimosas, ao pé do Museu Mineiro.
A minha mulher trabalhava na Fábrica da Leonesa que era no Bonfim. Ela
estava na estamparia a abrir carimbos e a fazer desenhos para estampar a
roupa. Depois saiu para ter os filhos e dedicou-se à casa. Tive três filhos. Os
meus filhos faziam a 4ª classe e depois iam trabalhar. Tenho um que é
fotógrafo, outro é viajante, tenho outro que é feirante. Estão todos mais ou
menos bem.
Tive 2 filhos na Guerra Colonial, o que foi como uma doença para a minha
mulher. Foi a partir daí que ela começou a ser de esquerda. O mais velho
esteve 16 meses nas matas, em Emeposo. Graças a Deus vieram todos com
saúde. Tinha outro que estava pronto para ir mas deu-se o 25 de Abril e já não
foi.
Actividade Profissional
A minha mãe pôs-me na escola até aos 9 anos mas como viu que eu não dava
nada, pôs-me a trabalhar com essa idade. Fui para Fânzeres como aprendiz de
marceneiro. Trabalhava 12 horas. Começava às 7 e ia até às 8 ou às 9. Trazia
5$00 por semana e nem isso às vezes trazíamos porque não havia dinheiro.
Eles não tinham dinheiro para me dar. O meu trabalho era aquecer a cola e
quando a gente não aquecia a cola em termos, levava de vez em quando uma
sarrafada. Não havia folgas naquele tempo. Trabalhávamos ao Domingo a
varrer a oficina. Estive lá até aos 12 anos. Como eu ganhava poucochinho e
havia aqui as minas perto de nós, a minha mãe tirou-me para me pôr nas
minas. Trabalhei fora das minas a acarretar carvão nos terreiros. Chamávamos
a giga da terra. Trabalhava 12 horas e ganhava 3$00 por dia. Não havia folgas
nem descontos nem férias. Não havia nada.
Quando a gente fazia 16 anos tinha de ir para o fundo da mina mas a minha
mãe nunca me pôs no fundo. Tornou-me a tirar das minas e fui outra vez para
marceneiro, trabalhar para outros patrões. Fui ganhar parece que 10$00 por
semana. Não tinha folgas nem nada e trabalhava 12 horas por dia. Andei lá até
me casar, até aos 18 anos.
Quando casei, o meu sogro meteu-me na Fábrica da Leonesa onde a minha
mulher trabalhava. Eu ganhava sete mil e quinhentos e ela ganhava 8$00.
Passei a ganhar 12$00 como ajudante de tintureiro. Depois já ganhava 13$00
como tintureiro. Entretanto mudei para a estamparia a ganhar o mesmo. Lá
estampava-se a fazenda e usava-se uns aquecedores para a secar. Mas era
muito calor, um bocadinho duro, e eu não me dei com aquilo e vim-me embora.
Despedi-me.
Não havia contrato de trabalho nem folgas nem nada. Só descontávamos 5$00
para o sindicato e 10 tostões para o fundo de desemprego. Andei lá talvez uns
dez anos.
Dali então voltei para as minas de São Pedro da Cova. Já ia para os 30 anos. Fui
para lá como enchedor ganhar oito mil e quinhentos escudos. Quando eu lá
andei, andavam para cima de 300 pessoas porque no tempo da guerra não
havia que comer e as minas acudiram a muita gente. Pegava às 10 da noite até
às 6 da manhã e meia hora para comer. Levávamos a marmitazinha e
comíamos no fundo da mina, em cima duns cepos. Havia uma máquina que
apitava a todas as horas mas a gente no fundo não ouvia. Sabíamos quantas
horas eram porque tínhamos um relógio de bolso. Não havia balneários.
Saíamos todos pretos do fundo da mina e lavávamo-nos em casa.
O chofage era o melhor carvão, o de primeira, depois tínhamos o arraiana que
também ardia mas não ardia tanto, e havia o mistro que era o que fazia
aquelas bolas.
O carvão, naquele tempo, era transportado nos carros de bois. Ia para as
caldeiras que havia no Porto, para Massarelos, para a Fábrica da Leonesa e
para diversas coisas. Depois é que puseram as zorras, uma espécie de
eléctrico aberto, que levavam o carvão das minas de São Pedro da Cova.
Quando se fez o campo das Antas, as cestas do carvão, de cabo aéreo, iam
daqui para o Monte Aventino, de lá iam para a Estação de Rio Tinto e dali é
que era distribuído o carvão para as caldeiras.
Com o gasómetro gastava meio quarto de carbonete à minha conta. O
gasómetro era para a gente se alumiar no fundo das minas. Usávamos o
machado, a picareta com que a gente picava o carvão e o rodo de puxar. O
mineiro ganhava 10$00 mas as regalias eram iguais às nossas. Tínhamos, por
exemplo, uma cantina. Era tempo de guerra, era tudo racionado, falhava a broa
em todo o lado mas na cantina nunca falhava e foi isso que me obrigou a ir
para as minas, para matar a fome aos meus filhos. Eu tinha direito a 1 Kg de
broa e os meus filhos tinham direito a 1/2 Kg.
Lembro-me da greve dos mineiros de 1946. Aqui em baixo, defronte dos
bombeiros, o sindicato tinha uma cantina e fazia lá sopa para os filhos dos
mineiros porque, como eles estavam em greve, não havia que comer. Cheguei
a lá ir.
Mas aquilo era uma escravidão. No princípio, descíamos a pé para o fundo das
minas. Depois, puseram uma escadaria que nem era escadaria nem nada.
Parecia que íamos numa jaula. Era o guindaste de São Vicente. Eu chegava lá,
tinha de vestir um calção, chamávamos nós uma tanga, e o corpo para cima
em pelote, porque no fundo da mina era muito calor e a gente não aguentava.
O capataz dizia assim: "amanhã ao fim de 8 horas quero tantas barlinas", que
eram vagonetes. Mas o clima era muito quente e se não cumpríamos,
chegávamos ao fim da quinzena e em vez de recebermos 15 dias, recebíamos
só 12 ou 13. Os capatazes eram uns carrascos para nós. Obrigavam-nos a
"botar" aquela conta e se a gente não "botasse", o castigo era não ganhar.
Trabalhávamos e não ganhávamos.
As galerias eram como os prédios, tinham o 1º, 2º, 3º, 4º e 5º piso. A gente só
cabia em pé. Houve muitos acidentes. Até morreu muita gente. Uma ocasião,
eu vinha por uma galeria abaixo e estraguei um pé. Nunca apanhei a silicosa
mas muitos colegas meus apanharam.
Quem quisesse falar com o Dr.Porfírio de Andrade que era o manda-chuva
das minas, tinha de pôr o casco, o emblema, da Legião. Aquele que dizia
alguma coisa já sabia onde é que havia de parar. Saía do fundo da mina e já
estava a PIDE para o levar, como aconteceu a muitos. "Bufos" era o que havia
mais e eles iam dizer ao Dr.Porfírio de Andrade e ele dava logo com a PIDE.
Andei no fundo da mina não chegou bem a 3 anos. Depois fui trabalhar para a firma alemã Hintze e Companhia Lda. que era na
Rua Sá da Bandeira, nº 520. Eram uma jóia de patrões. Sem saber ler, fui fazer
a cobrança ao dia 10. Ia à Alfândega despachar máquinas, tirar as
confrontações para as máquinas (que eram os números delas), ia aos bancos
depositar ou levantar dinheiro... Comecei a ler qualquer coisinha à custa disso.
Aprendi sozinho. Fui ganhar 950$00 e já descontava para a Caixa. Pelo meu
sindicato, que era o Sindicato dos Caixeiros, eu não tinha direito a folga mas o patrão
dava-me por livre vontade dele. Dava-me, por exemplo, quinze dias de férias
para eu descansar. Trabalhávamos sete horas e meia por dia. Ao Sábado de
tarde e ao Domingo já não trabalhava.
Ao fim do ano, davam-me um conto de réis como gratificação de Natal.
Naquela altura era muito dinheiro.
Trabalhei 20 anos nessa firma. Quando saí ganhava um conto e cem e davam-
me o passe que era bem bom. Saí porque eles ficaram sem a representação
da marca Agfa. Deram-me uma carta com aviso prévio e uma indemnização de
vinte contos. Ao fim de três meses estávamos todos despedidos.
Dali fui para a Pensão Aviz, para a Rua Entreparedes, restaurar salas. Fazia
trabalho de marceneiro. Punha cortinados, sanefas a correr à mão, arranjava
camas. Fui para lá ganhar 13$00 por dia e davam-me de comer ao meio-dia.
Trabalhava oito horas por dia e também trabalhava ao Sábado mas depois o
patrão deu-nos o Sábado de folga. Estive lá 12 anos. Quando saí, na idade da
reforma, já ganhava quatro contos e tal. Hoje é que estou com 46 contos. É
uma miséria.
Depois dediquei-me a fazer peças de artesanato. Tenho aqui a banca de matar
porcos e o alguidar porque naquele tempo, em São Pedro da Cova, não havia
matadouro e os porcos matavam-se em casa. A gente ia lá buscar o sangue
para fazer papas em casa. Há 16 anos, fui convidado para concorrer a um
curso que era para pôr os deficientes a trabalhar. Era no Carvalhido e na altura
ganhava 60 contos por mês. Ensinei-os a fazer miniaturas em madeira. Fez-se
uma exposição dos trabalhos que eles fizeram, frente à Câmara de Gaia, e fui
entrevistado no programa "Às Dez".
Também trabalhei muito para o Museu Mineiro. Fiz as camas, trabalhei na
limpeza porque aquilo era uma miséria ali no bairro. Eu e os outros. Tudo de
graça.
Este ano, o Sr. Valentim Loureiro condecorou-me no dia dos meus anos, no dia
26 de Maio.
Actividade Associativa
Há 4 anos formámos a Associação do Centro dos Reformados em São Pedro da Cova.
A minha mulher era a presidente e eu era vogal. Chegámos a ter para
cima de 600 sócios. A gente dava 100$ por ano. Formámos aquilo para
resolver os problemas dos reformados: melhores reformas. Cheguei a ir com a
minha mulher à Assembleia da República.
Quando a gente gostava de dar um passeio ao fim de semana, eu é que ia à
Câmara pedir o carro.
Passado mais ou menos 1 ano, saí de lá porque estávamos aqui, por baixo da
Junta, e não tínhamos condições nenhumas e porque havia lá um que ia lá
discutir política e nós estávamos para discutir os problemas dos reformados.
A Associação continua a existir e andam atrás de nós mas não me meto mais
nisso.
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