Albina Rosa da Silva Maia
Dados pessoais, infância, escolaridade
O meu nome é Albina Rosa da Silva Maia e nasci a 10 de Janeiro de 1925. A
minha mãe era Albina Rosa da Silva e o meu pai era incógnito, não me
perfilhou mas eu sei quem era. Era um homem de Trás-os-Montes, já de muita
idade, tinha sido marinheiro. Dizem que se chamava António, era viúvo e tinha
um filho mais velho que eu. A minha mãe era de Vila do Conde, ficou viúva
ainda muito nova, era analfabeta. Eu fiquei sem pai com 3 anos, que morreu
com uma febre que andou por aí nessa época. Nessa altura a minha mãe tinha
28 anos, e ficou sozinha com 5 filhos. Teve 6 filhos, mas um deles morreu. Da
relação entre esse homem e a minha mãe eu era a única filha.
A minha mãe nunca deu nenhum filho. Havia pessoas que me queriam, quando
eu nasci, mas ela disse que nos havia de criar a todos conforme pudesse. E
assim foi. Eu tinha 9 anos quando fui trabalhar.
Eu ainda andei a pedir para comer, a bater à porta dos lavradores, mas eu não
tinha jeito para pedir, e eles não me davam nada.
A minha mãe era costureira e, quando saía para ir trabalhar, deixava-nos à
nossa sorte, na ilha onde morávamos. As minhas bonecas eram farrapos que a
minha mãe costurava à nossa beira, fazia um vestido de farrapos e a cama era
uma caixa de papelão. Dois dos meus irmãos morreram, um chamado José e
outra chamada Alice.
Na escola eu desmaiava muitas vezes e a professora é que tratava de mim. Ela
achava que era fome e começou a dar-me de comer, todos os dias. Até quando
não havia aulas eu ia, ao Domingo e tudo, lá comer. Andei dois anos na escola,
mas a vida era difícil e a minha mãe precisava que fossemos trabalhar. A
minha irmã foi trabalhar com 7 anos, mais nova ainda que eu.
Actividade Profissional
Aos 9 anos fui trabalhar para a Fábrica "9 de Julho". Havia uma época do ano
em que as fábrica pediam muitas crianças: era na época do balanço, quando o
pessoal tinha de ir de férias, e eles então chamavam crianças para fazer o
serviço. Depois desse tempo iam outra vez embora. Eu fui ficando porque o
patrão teve pena da minha pobreza, mas, como era proibido trabalhar tão nova
pôs-me a servir na casa da senhora. Ela era muito má e batia-me. Ia de manhã
e vinha à noite, tal como se estivesse a trabalhar na fábrica. O salário também
era igual: eram 2$00 por dia.
A minha irmã já ia para a fábrica porque era 6 ou 7 anos mais velha do que eu.
Quando fiz 14 anos pedi ao patrão, o Francisco Oliveira, que era muito bom, e
passei para a fábrica. Trabalhava de 2ª feira até sábado. À semana
entravamos às 9h00 e saíamos às 18h00. No Sábado entrávamos às 8h00 e
saíamos ao meio-dia.
Quando passei para fábrica, comecei por trabalhar por minha conta: quanto
mais produzisse, mais ganhava. Os primeiros meses cheguei a tirar uma féria
maior que a da minha irmã. A minha mãe até chorou. Mas depois de ter a
minha primeira filha deixei de conseguir produzir tanto, o meu marido era
trolha, ganhava pouco, e pedi ao patrão para me passar a efectiva e pagar o
ordenado certo ao fim do mês.
Na fábrica trabalhavam 350 pessoas, em Passamanarias, miudezas. Era quase
tudo mulheres, mas também havia alguns homens. Lá não havia creche para
as crianças. A única coisa a que tínhamos direito era um mês de férias, quando
tínhamos bébé. As crianças tinham que ir para amas, que eram muito caras e
levavam quase o nosso ordenado todo. Eu pagava 80$00 por mês, à ama, e
ganhava só 7$50 por dia. E tinha de me levantar à 5h00 para lavar os panos
dos meus filhos. Toda a gente dizia que não valia a pena eu ir trabalhar, mas
se não tivesse ido não tinha nem a pouca reforma que tenho hoje.
Para termos 3 dias de férias tínhamos de trabalhar 3 anos, mas eram pagas.
Casei com o José Bonifácio aos 18 anos. O nosso casamento foi muito
pobrezinho. Eu ainda levei a minha féria, que a minha mãe deu-me, mas ele
nem levou féria, nem muda de roupa, nem nada. Ele nessa altura trabalhava na
Fábrica dos Carrinhos, e ganhava 9$00 por dia.
Depois, com o passar dos anos fui sendo aumentada, conforme as ordens do
governo. Quando saí de lá ganhava 22$50.
A fábrica fechou há muitos anos, logo após o 25 de Abril. Tomaram a fábrica
por assalto, cortaram a energia, não se sabia o que se ia fazer. Fizeram-se
muitas asneiras também. Em pouco tempo deram cabo de tudo.
Actividade Social e Política
Aos 19 anos nasceu a minha primeira filha e nesse mesmo ano o Bonifácio foi
preso por causa de política, de ligações ao Partido Comunista. Foram buscá-lo
à Fábrica dos Carrinhos no dia 15 de Fevereiro de 1945, e esteve preso durante
noventa e tal dias, incomunicável. Eu mandava-lhe roupa lavada e ia buscar a
suja duas vezes por semana. Começámos a comunicar através de um
bilhetinho que eu punha debaixo da parte mais tostadinha da carcaça do pão.
Ele depois começou a descoser os fundilhos das cuecas e a esconder lá os
bilhetinhos que me escrevia.
Já perto de concluir os três meses de prisão eu consegui que me deixassem
falar com ele. Abracei-me a ele e só lhe disse "Tem coragem, tem coragem".
Da segunda vez que me deixaram falar com ele já foi na grade. Era uma sala
com uma grade, parecíamos animais, com um pide a rondar, e os presos da
parte de lá e nós da parte de cá. Só podíamos falar de coisas sem muita
importância, porque eles ouviam tudo.
E nós, as mulheres, tínhamos de ser muito fortes. Porque éramos novas e os
pides perseguiam-nos. Tinha uma amiga que andava sempre atrás deles a
pedir que libertassem o marido, e disseram-lhe "Se quer que o liberte vá ter
comigo a tal parte". E ela foi. Era uma casa de tia, ela veio embora muito
desanimada e eles começaram a andar atrás dela.
Enquanto ele estava preso quem me valia era a minha mãe. Passei a dormir
em casa dela, com a minha filha.
Quando o mandaram embora, em liberdade, eu tinha acabado de o ir visitar e
vinha a pé pela Constituição para casa. Ele apanhou um eléctrico, e quando
me viu deitou-se abaixo, e viemos os dois a pé, o resto do caminho.
Quando chegou a casa trazia as pernas pretas das torturas que lhe faziam, nos
interrogatórios. Também lhe calcavam os pés. Quando ele chegou, tinha-os tão
pretos e tão inchados que tive de chamar o médico, o Dr. Ruela. Abençoado
homem que não quis um tostão. Esteve 15 dias a tratar-se e depois voltou a
trabalhar na Fábrica dos Carrinhos. A segunda prisão do Bonifácio foi em 1950, e ficou 6 meses. Nessa época
estava a trabalhar a trolha. Dessa vez a PIDE bateu-nos à porta, às 5h00 da
manhã. Eram uns quantos agentes, de metralhadoras às costas, a levarem o
Bonifácio. A minha filha ainda só tinha 6 aninhos, viu tudo, e nunca mais se
esqueceu, ficou traumatizada. O meu Sérgio ainda era pequenino, mas
adoeceu e só falava no pai, só queria o pai.
Só o deixaram sair pelo Natal, sob fiança de 25 contos. Mais uma vez, foi a
minha mãe que nos valeu. Foi ela que andou a pedir dinheiro emprestado para
pagar a fiança. Depois também precisámos de duas testemunhas abonatórias,
que foram a mãe do Dr. Carlos Cal Brandão, e o Dr. Ramos de Almeida.
Para o Natal eu não tinha nada para comer, mas tinha ficado com um bilhete
de 10 tostões para um cabaz de compras e saiu-nos. Tive arroz, açúcar,
bacalhau, batatas, tudo...
Passado uns tempos foi outra vez chamado à PIDE e tornou a ficar lá. Teve de
ir a julgamento e apanhou dois anos de prisão. Mas depois veio cá de visita o
Ministro do Interior e várias mulheres foram pedir-lhe a amnistia para os
libertar. Assim, passados uns dias pôde voltar outra vez para casa, mas a
minha filha não o queria.
Foram alturas muito más. Lembro-me de uma vez que fui visitar o Bonifácio e,
enquanto estávamos cá fora no pátio à espera, caiu um homem de uma janela.
Dizem que era espanhol e que morreu, que estava a ser interrogado e para não
denunciar ninguém se tinha atirado pela janela.
Depois disto ele conseguiu arranjar trabalho na EFACEC e a nossa vida
melhorou muito. Ele estava bem, o ordenado era bom, e eles eram muito
amigos dos operários, até se faziam festas para as crianças.
Ainda nasceram mais três filhos, todos muito espaçados. A infância dos dois
primeiros foi muito má, mas estes três já tiveram outras condições. A mais
velha, aos 10 anos já tinha de olhar pelos irmãos.
Eu ia ajudando o Bonifácio na actividade política, ajudava conforme ia
podendo. Era na minha sala que eles faziam umas folhas políticas e depois
saíamos a meio da noite para distribuir por todo o lado. Deixava os meus filhos
a dormir e também ia. Deitávamos muitos papéis numa bouça por onde
passava o pessoal para ir para a EFACEC. Para a Fábrica "9 de Julho" nunca
levei nada.
Os meus filhos mais velhos tiveram que ir para a Guerra Colonial. Ajeitaram
tudo sem eu ver, nem saber, e só lá fora é que me escreveram a dizer onde
estavam. Um esteve em Moçambique, em Caborabassa, e o outro em Angola,
em Luanda. Nessa época eu passei muito mal de saúde, mas felizmente, os
dois voltaram bem.
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