Carlos Pereira Soares
Dados pessoais, infância, escolaridade
Nasci na freguesia de Miragaia, no Hospital Geral de Santo António, mas morava na Sé. A
Sé era fundamentalmente um bairro operário, já marcado por uma forte marginalização,
tinha vivência de prostituição, porque na Rua da Banharia, Rua dos Pelames, Rua de São
Sebastião, Rua dos Mercadores mesmo, na chamada Viela do Anjo, era o lúmpen, como
dizia o Marx, pode haver o lúmpen com uma forte tendência proletária e que vêm a ser
uns tipos porreiros, ou ao contrário.
Tive quatro irmãos. Dois já faleceram, e estamos dois. O meu pai tinha a quarta classe, a
minha mãe era analfabeta. A minha mãe vendia fruta e o meu pai era operário chapeleiro,
mas depois, conseguiu arranjar um dinheiro, porque empenhou uma máquina de costura
e pediu mais uns dinheiros emprestados a alguns amigos, e então montou ele a sua
própria oficina de chapelaria, a passar chapéus a ferro e a vender chapéus. Eram
pessoas sérias, como havia centenas e centenas de pessoas seríssimas ali na Sé, com
uma forte personalidade até, de independência. Os ardinas, os engraxadores, eram
carregadores e descarregadores do rio, ali das barcaças do rio, eram vendedeiras de
fruta e de peixe...
O meu pai foi preso político, esteve preso em 1937, acusado de ser do Partido Comunista
Português. É preso, nas grandes prisões de 1937, e vai para a Rua do Heroísmo, e eu
miúdo, muito pequeno, tenho umas vagas ideias de ter ido com a minha mãe visitá-lo. O
meu pai foi um homem ligado ao Movimento de Unidade Democrática. Era um velho
anarquista, vem do anarco-sindicalismo, depois vai ao Partido Comunista, mas recordo-
me perfeitamente de ver em casa aqueles jornais antigos "A Batalha".
Na Sé, aos sábados e aos domingos vinham os barcos "rabelos", que traziam frango,
batatas, couves, nabos, nabiças e havia uma coisa que se chamava as Escadas da
Padeira, que quase abrangia toda a marginal da Ribeira, onde se fazia o mercado. E
havia mulheres que compravam aos "rabelos" e vendiam depois na giga na Ribeira. Aliás
o Abel Salazar marca isso muito bem nas pinturas que tem das mulheres da Ribeira.
Havia os carros de bois e os cavalos, as carroças, que iam carregar o saco de arroz,
havia os paus de sabão, barras de sabão, que vinham dentro de umas caixas, e as
mercearias pequenas dos bairros iam à Rua de São João abastecer-se, iam buscar o saco
do açúcar, o meio saco de açúcar, a meia caixa de sabão, havia o sabão amarelo que era
para esfregar as casas, porque não havia os detergentes. Havia uma tábua que tinha
uma escova de pelos grossos, e nós esfregávamos com esse sabão amarelo, porque as
casa eram todas soalhadas a madeira ou quase todas. E esse sabão amarelo servia para
lavar o chão. Havia um grande movimento comercial, ali na Rua de São João, passavam lá
dezenas de carroças de bois.
Havia dez ou quinze mercearias, tanto vendiam broa, como vendiam sabão, como
vendiam os cinco tostões de açúcar, os 25 tostões de manteiga. Era onde a gente ia
buscar meio chouriço para o cozido que ao domingo se comia em casa, meia chouricinha
para seis pessoas. A escola primária era na Rua Duque de Loulé, nas Fontainhas. A escola era só para
rapazes. Nós íamos para a escola, de segunda a sexta feira, de manhã e de tarde, íamos
comer a casa e voltávamos, e ao sábado tínhamos a Mocidade Portuguesa. Que era
cantar o hino nacional e cantar as cantigas, e fazer a marcha da Mocidade, esquerda
direita, esquerda direita, e tal, marcar passo, sem farda, descalços e de chancas. Ia lá um
chefe de quina, que ia fardado à Mocidade Portuguesa, que nos ia dar instrução militar, a
marchar e tal e a fazer essas coisas, e de vez em quando jogávamos a bola. Havia um
professor na minha escola que não tinha nada a ver com isso, nem queria nada disso. Os
alunos dele não faziam isso, e isso trouxe-lhe graves amargos de boca. Felizmente eu
caio nas mão desse homem, se calhar é por isso que sou o que sou, que se chamava
Virgílio Pereira. Era um professor primário, mas era também um homem que se dedicava
muito ao Cancioneiro Popular, tinha uma grande paixão pelos corpos corais, e por isso
era o maestro dos meninos desamparados, ou das meninas desamparadas, dali do
Postigo do Sol; conduzia aquele corpo coral e fazia, da sua classe, na escola primária,
um coral. E então ao sábado, em lugar de irmos marchar lá para fora, cantávamos as
cançõezinhas do Cancioneiro Popular, canções porreiras, canções como mais ninguém
cantava, e o hino nacional, mas cantado de outra maneira e de outra forma.
Depois, coisa curiosa, em 1950 e qualquer coisa, eu apareço no MUD Juvenil. E o MUD
Juvenil tinha um corpo coral, era uma forma de juntar as pessoas, e então aos domingos
de manhã, ensaiava as suas canções, neste caso já aquelas canções heróicas, nos
Fenianos, que cedeu o seu espaço ao MUD Juvenil. E quem era o maestro? Era o meu
professor da escola primária, que eu vou encontrar, anos depois, eu já no MUD Juvenil e
ele como maestro, ou a ajudar o MUD Juvenil nas canções heróicas.
Não havia parques infantis como há hoje. Eu não tinha bicicleta; quando tinha 25 tostões
ia alugar uma, à Cordoaria ou qualquer coisa, mas espatifava a bicicleta, porque não
sabia andar, e abandonava-a numa rua e fugia para casa. Ou então íamos ao Palácio de
Cristal, e havia lá umas bicicletas que a gente alugava, 25 tostões uma hora, lá ia o
dinheiro da semana, e andávamos meia horita de bicicleta. Brincadeiras era jogar a bola
na rua e ir para a esquadra por causa de ser apanhado a jogar, porque não se podia
jogar a bola. As bolas eram feitas por nós, com uma meia de mulher, com farrapos lá
dentro, e aqueles nós que sabíamos dar; fazia bolas muito bonitas, que pinchavam muito
bem e tudo, e íamos jogar para as Fontaínhas. Recordo-me perfeitamente que o meu pai
pagou duas multas, uma por andar a jogar a bola, eram 9 escudos, e 9 escudos, nessa
altura, era muito dinheiro, e outra por roubar flores num jardim. Nas filmagens do Aniki
Bobó andei para lá aos saltos, atrás daquela gente toda, andamos aos "cóbóis" , etc.. Fui
um dos escolhidos; o homem foi lá à escola e escolheu meia dúzia de rapazes e lá
fomos. Foi assim que eu tive o meu primeiro fato, foi-me dado por ter participado no Aniki
Bobó, mas isso não é assim importante.
Meteram-me a estudar aos 13 anos, fui para o Oliveira Martins, que era uma escola que
havia ali na Rua do Sol... E depois passei para o Infante D. Henrique onde andei até ao
4º ano, como desenhador de máquinas, fiz ali quase o curso todo. Andei dois anos na
Escola Infante D. Henrique, como aluno de dia, e depois passei para a noite porque fui
trabalhar, era preciso ir trabalhar e eu fui para uma litografia. Aí com 14 anos, 13, 14
anos.
Íamos para a escola, e às vezes tínhamos que dar grandes voltas porque a polícia estava
à entrada da Rua do Sol, e nós não passávamos porque estávamos descalços. Depois os
pais arranjaram uma solução, com umas soletas, são umas coisas de madeira, a gente
punha o pé, o pai fazia um risco, serrava aquilo, punha um bocado de cabedal aqui, e a
gente ia de soletas para a escola. E já não andávamos descalços. Quando queríamos
correr pegávamos na soleta na mão, e corríamos, ou normalmente trazíamos as soletas
na pasta, na pasta não, na saca, eram sacas de corda, de linhagem, tinha um elefante
verde, a minha tinha um elefante verde pintado, e metíamos a soleta no saco e lá íamos.
Íamos para a escola, ou íamos jogar a bola. A certa altura saímos da Rua Escura e fomos para Vila Nova de Gaia, para a Rua Direita,
pagar um aluguer mais barato um bocadinho. Depois viemos outra vez para a Sé. Vivi
numa casa na Sé onde, para ir lavar a cara, tinha que esperar que todos os do prédio se
lavassem. O quarto de banho era para as três famílias que moravam no prédio. Em Gaia
a casa já tinha um quarto de banho e a retrete era um canudo de cimento; o meu pai fez
uma tampa de madeira, mas não havia mais nada. Banho, a malta tomava uma vez por
semana. A mãe aquecia a água numa panela, havia uma bacia grande de zinco, e toca a
temperar a água e a gente lavava-se de repente, porque no Inverno ficava muito frio; no
Verão era bom. Não havia um quarto de banho, mas também não havia dinheiro para
pagar a água. Poupava-se a água, como se poupava o azeite.
Eu ia para as bichas de madrugada para trazer um quilo de carvão, para a minha mãe ...
Ia para as bichas às sete horas da tarde e saía às sete horas da manhã do outro dia para
trazer um quarteirão de azeite. E a minha mãe mobilizava os filhos todos, um ia para a
bicha da broa, outro ia para a bicha para o Mercado do Anjo, passávamos uma noite
para trazer meia sêmea. Quando caso em 1961, com 30 anos, fui morar para a Rua de Santo António, para casa da
minha mulher, onde ela vivia com a mãe. E depois para Vila Nova de Gaia, quando a mãe
faleceu; eu já tinha mais um filho ou dois, portanto já não cabíamos ali, e fomos para
Gaia, até hoje.
Actividade Profissional
Comecei a trabalhar na Fotolitografia, na Rua da Alegria, uma tipografia de um homem
chamado Tomás, que foi anarquista, e que, em certo e determinado momento histórico
deu a litografia aos trabalhadores. Já era uma boa litografia, onde trabalhavam trinta e tal.
Eu fui passando pelas máquinas, passei pelas pedras, por uma coisa que se chama
limpar pedra... Nessa altura, chamava-se Fotolitografia mas não tinha fotolitos. Os
desenhadores desenhavam em pedra. Desenhavam as cores, depois a pedra ia para a
máquina, e quando faziam o vermelho, ou o preto ou quê, tiravam a pedra e era preciso
limpá-la com água e com uma outra pedra. Eu estava nesse serviço, a esfregar a pedra
durante o dia todo. Trabalhava-se ao sábado. Daí passei para chegar papel à máquina, e
depois, como tinha um certo jeito de mãos, fui para rapaz do desenho, na secção do
desenho; andava a limpar os tinteiros, a mexer assim umas coisitas, e depois transformei-
me em desenhador de litografia. Entrava às oito horas da manhã, e saía às cinco horas
porque ia para a escola. Fiquei lá uns seis ou sete anos. Depois fui despedido porque
chamei ladrão ao gajo. Armei-me em líder dos ofendidos e dos humilhados lá dentro e
enfrentei o patrão.
Depois, andei à procura de emprego, dentro da mesma área, e não encontrei, porque os
gajos pediam informações. Fui para desenhador de misonetes da têxtil. Fazer os
desenhos para as estamparias, para estampar os tecidos. Isso é feito através de um
quadro, a que se chama o carimbo, mas é preciso fazer os desenhos que depois são
transportados para esse carimbo, e depois são estampados à mão ou de máquina. Mas
de qualquer modo é sempre preciso fazer os desenhos e isso chama-se misonetes. Vou
para a Sociedade de Tecidos Paris, depois é que fui para a Altex, depois para a Raione,
que era por trás mesmo do Conde Ferreira.
Na Sociedade de Tecidos Paris, fui ganhar se calhar o mesmo, porque eu estava
desempregado, e aceitava o que quer que fosse. Mas se calhar até fui ganhar menos,
porque tinha as deslocações, a Sociedade de Tecidos Paris era na Areosa, e eu já tinha
que sair muito cedo de casa para ir a pé para a Areosa, e levar o tacho na mão, aquecia
lá a comida, e depois saía às 8 horas e chegava a casa tardíssimo porque vinha a pé. A
primeira vez que eu tive férias foram três dias, ao fim de um ano de trabalho, ou dois
anos de trabalho. Três dias. Era as férias que havia. Depois os trabalhadores é que foram
conquistando coisas. Estes 22 dias só vêm depois do 25 de Abril. Antes eram 8, no
máximo 15, quando um homem já trabalhava há 36 anos numa empresa, tinha 15 dias.
Dentro da empresa havia grupos, secções que se movimentavam, e que paravam, que
faziam pequenas paragens, e iam ao patrão, e depois vinha o encarregado, e depois
vinha o mestre, e depois não sei quê. Havia abaixos-assinados. A gente andava
permanentemente a assinar coisas que a gente já dizia, é contra..., é pelas 8 horas de
trabalho. O Sindicato Têxtil foi um dos primeiro a tomar posições justas, havia um grupo
de homens que se movimentavam por melhores condições de trabalho, aumentos
salariais, etc.. Para chegar à greve era uma coisa muito complicada, muito difícil.
De lá fui trabalhar num agente da Philips, no Teixeira de Brito. Foi lá que conheci a minha
mulher. E é de lá que vou preso em 1959. Quando saí da prisão fui trabalhar para a Phillips,
para junto do contencioso, ligado às pessoas que não pagavam os rádios, as coisas e tal,
ia falar com as pessoas, a ver se resolvia os problemas. Depois caso, a minha mulher
estava ligada a uma empresa de molduras, a Santos e Irmãos, e quando o pai dela falta
eu vou ocupar o lugar dele na fábrica. Na altura trabalhavam lá umas 34, 35 pessoas. E
hoje trabalham umas dezoito. Tivemos que acompanhar os tempos. Há coisas que se
faziam, carpintarias, muito manual, e que hoje é a máquina que funciona. Também com
os espanhóis e os italianos a invadirem o nosso mercado, há muitas coisas que já estão
feitas e não vale a pena fazer. Quando vou para a empresa esta já tem a sua
administração, já tem os seus patrões, que são dois. Eu entro praticamente como
funcionário, porque quem é sócio é a minha mulher, e eu vou para lá para defender os
interesses dela. Mas sou um funcionário normal, cumpro o horário normal, tanto assim
que nem ganho como ganham os patrões, compreende. Eu ganho como ganha o
operário mais bem qualificado de lá, é assim que eu ganho. E estou assim dois anos ou
três anos. Só que depois como aquilo é uma coisa de muita sensibilidade, e eu fui
habituado também a coisas de muita sensibilidade, porque era desenhador, porque tenho
um passado cultural, entrei bem naquele tipo de trabalho, de moldura, de pintura,
começo-me a dar bem com os pintores, etc., mas continuo a ser um funcionário, a
receber ao fim do mês, como qualquer outro. Só que, depois, falta um outro sócio que
faleceu, e eu fui chamado e vou ocupar a gerência, mas continuo a ser da mesma
maneira igual aos outros. Depois faleceu o outro sócio e hoje estou sozinho, mas entro
às oito e meia, saio às seis ou às sete ou às oito, estou a trabalhar ao lado dos operários,
não há assim grande diferenças.
Actividade Social e Política
Eu começo a aparecer no MUD Juvenil com 16, 17 anos. Quando vou ao MUD Juvenil já
estou na têxtil, embora eu já soubesse muita coisa porque o meu pai esteve na cadeia,
na Séjá tinha havido prisões políticas.
Na Sé havia lá um jovem que era um tipo diferente, era o Alcino de Sousa. Era filho do
chefe da 1ª esquadra. Era um tipo muito inteligente, trabalhava não sei onde, estudava,
era muito considerado no Bairro da Sé, morava na Rua D. Hugo. O meu pai fazia parte do
Rancho da Sé, e ele parava pelo rancho. Começou a andar comigo e com outros,
começou-nos a emprestar livros, falávamos, contáva-nos como é que nasciam as
abelhas, como é que viviam. A gente admirava-o muito, porque ele sabia estas coisas
todas, e a gente não sabia. Como é que se formou o mundo, que não tem nada a ver com
o Adão e Eva, que não foi Nosso Senhor que fez, nem nada, explicava aquilo
cientificamente, se calhar com alguns erros, mas para nós era um deslumbramento, estar
a ouvir o Alcino de Sousa. Depois começou a ir connosco, a encontrar-se com outros
tipos que eram amigos dele, e eles passaram a ser também nossos amigos, e nós
começamos a ir ao domingo passear, com uns rapazes e umas raparigas que não eram
de lá do bairro, não eram da Sé, não eram operários, não eram camponeses, eram uns
senhores que eram estudantes e que a gente julgava que estavam muito longe de nós,
mas afinal eram uns tipos porreiros, que nos tratavam por tu, e diziam que a gente os
tratasse por tu, etc., etc., e a gente ia passear, e eles cantavam, cantavam, cantavam, e
só cantavam. E era porreiro, era bonito, e nós começamos a ir todos os domingos, e
então isso era o MUD Juvenil. Lá faziam-se debates políticos sobre os "Direitos da
Juventude", "Porque é que não é obrigatório sermos da Mocidade Portuguesa", depois
começam a vir papéis e a gente começa a lê-los, começam a emprestar-nos livros e a
gente começa a ler, depois começamos nós a responsabilizar-nos por outros,
começamos nós a trazer o livro para a mãe, ou a ler à mãe porque a mãe não sabe ler,
que era o meu caso, ou a emprestar aos irmãos, ou aos vizinhos, e comecei eu a ser
visto de outra maneira também lá na rua. Havia ali um grupo na Sé, o Grupo da Sé, que
era um grupo de agitação e propaganda, que era uma coisa fabulosa. Havia uns papéis
fininhos, que eram distribuídos nos cinemas. A polícia andou a mobilizar a polícia toda
para ir aos cinemas todos da cidade, e todos os dias, ou quase, apareciam os cinemas
colados de propaganda. Íamos, por exemplo, ao Coliseu do Porto, que nessa altura dava
cinema. Íamos ver um filme, "O Zorro", por exemplo, não sei, estou agora a inventar. E
davam-nos as duas ou três últimas frases do filme. Vai acontecer isto, tanto tempo depois
acontece isto, ela diz para ele, ou ele diz para ela, ou o bandido disse ao artista, ou o
artista diz ao cavalo, isto assim assim. Eu dizia aos meus dois companheiros, "a certa e
determinada altura, depois do segundo intervalo, vai acontecer isto e isto e quando está
isto assim, trás, trás". E então cada um levava um maço de papéis, e davam-nos um
bilhete para o varandim, na primeira fila do balcão popular. Nós metíamos a gabardina ou
o casaco por cima daquilo, e púnhamos aquilo por baixo. Eu punha aqui, o Afonso punha
naquela quina, e o Almeida, ou o Jerónimo punha na outra quina. Quando havia a tal
frase, a gente levantava o casaco, só. O senhor ou a senhora ou o casal que estavam à
nossa beira, nem reparavam nisso; a gente tirava o casaco, e os papéis voavam todos lá
para baixo com uma limpeza. Outra cena que fazíamos, nos campanários, nas igrejas, na
Torre dos Clérigos, lançávamos da Torre dos Clérigos papéis, por exemplo, em certa e
determinada altura houve, em 1950 e qualquer coisa começou a Índia a exigir Goa,
Damão e Diu. E aconteceram marchas de silêncio em que a cidade toda ficava às
escuras, e vinham as velhas, as beatas e os beatos da Igreja, vinham da Trindade até à
Sé, de velas na mão, só passavam aqueles milhares de pessoas, de velinhas, contra
Goa, e por Damão e por Diu, e contra a Índia. A máquina de propaganda do Salazar
funcionou de tal ordem que mesmo democratas, liberais, aderiram. Da torre da Sé
começaram a cair milhares de papéis, para cima daqueles milhares de pessoas, a polícia
começou a movimentar-se, as pessoas começaram quase em pânico, parece que quase
não houve comício, porque estavam aí outra vez os comunistas e não sei quê. Como é
que se fez isso? Foram os miúdos da rua, os miúdos, salvo seja, já eram homenzinhos,
18 anos, 19 alguns, mas que já tinham uns certos anos de experiência. Nós dávamo-nos
muito bem ali na Sé, havia um sapateiro, que era o guarda da Torre, e o guarda dos
claustros, que era o Sr. Armindo, que a gente funcionava bem com ele, e ele connosco, a
gente éramos os donos da Sé, vivíamos ali, crescemos e nascemos ali nos claustros,
portanto, entrávamos na Sé e saíamos quando queríamos, e conhecíamos aquelas
pedras, ainda hoje, como ninguém. E então pusemos centenas de papéis, à beira dos
sinos, e com carrinhos de linha que atirávamos cá para baixo, estava sempre cá em baixo
um amigo a apanhar o carrinho, uma linha que embrulhava um maço, outro carrinho que
embrulhava outro maço, e estivemos ali encostados ao muro horas e horas até que
viesse o comício. Quando veio foi só puxar pela linha, os papéis caíram todos cá abaixo
com uma limpeza bestial, e aquilo foi bonito de ver. Os polícias a correrem por tudo que
era sítio, a quererem invadir a torre porque estavam os comunistas lá dentro a atirar
papéis cá para fora, foram chamar o Sr. Armindo para abrir a porta, a polícia entrou às
centenas por lá dentro, e claro, não estava lá ninguém.
No Infante D. Henrique, à noite, já havia lá dentro a organização do MUD Juvenil.
Recordo-me dos 1º de Maio que se faziam lá movimentações, não havia escola, fizemos
greves por mais que uma vez, greves contra os horários, greves contra os professores,
volta e meia, eclodiam greves ali no Infante. Fui apanhado numa distribuição de papéis em 1950/1951, no MUD Juvenil, em defesa da paz,
e na recolha de assinaturas numa peregrinação no Monte da Virgem. Fomos presos uma
série deles e eu também fui. Estive preso onze meses.
E depois sou preso em 1959, por denúncia de outro camarada que cai e me denuncia. E eu
vou para a cadeia. Sou levado a julgamento ao fim de dez meses ou quê, estou em
Paços de Ferreira a aguardar julgamento. Fui condenado, nessa altura, por actividades já
ligadas ao Partido Comunista. Fomos 50 ou 60 dentro do mesmo processo, mas eles
retiram 3 ou 4, e responsabilizam-nos por tudo. Desta vez estive preso à volta de um ano
e pico. Seis meses na PIDE até à formação do processo, e depois aguardei julgamento
em Paços de Ferreira. O julgamento correu muito bem, em termos de denúncia, porque
os advogados serviam-se desses processos para denunciarem o sistema, a falta de
liberdade, e nós éramos o exemplo. Depois nós também falávamos, dizíamos o que é
que sentíamos, porque é que estávamos lá, e o que passámos lá dentro, etc., e
denunciávamos os gajos todos. O Tribunal era uma guerra, era uma luta ainda maior,
porque ali já estávamos à vontade para falar.
Éramos à volta de 50 no meu processo, e estávamos praticamente todos juntos. Os que
falaram e os que não falaram. A gente servia-se de estar junto, para ter conversas
colectivas, sobre tudo, falava-se sobre política, sobre o comportamento das pessoas na
polícia, lia-se livros, dizia-se poesia, tudo, para preencher o tempo, não é, aulas de inglês,
aulas de não sei quantos. E ainda sobrava tempo para dizer aos que tiveram um
comportamento menor que ainda tinham oportunidade de, no Tribunal, dizerem que isto,
isto e isto não foi verdade. Os gajos ficavam, não acreditavam muito, mas o que não
havia era o material legal, não é. "Mas então você não disse, ou tu disseste, ou não sei",
"Disse, porque fizeram-me isto uma noite, e isto, e isto, e eu disse, disse o que eles
queriam que eu dissesse". O que disse tudo de mim, tudo o que ele conhecia a meu
respeito, depois teve oportunidade de chegar lá e de dizer que tinha mentido, "tudo o que
disse foi uma história inventada pela polícia, e eu assinei".
Estive seis meses isolado. Estive um mês e tal sem ter visitas, de espécie nenhuma. Fiz
52 horas de estátua. Posso-vos contar assim uma coisinha. Eu fui a Lisboa, a um
encontro de quadros, uma reunião de jovens, que se juntavam em Lisboa, e por qualquer
razão, isso não aconteceu, e eu sou apanhado numa incursão da PIDE ao local, e vou
para a António Maria Cardoso. E há um pide que se chama Gouveia, que era um
torcionário, um miserável, um chefe de brigada da polícia. Esteve comigo, eu dizia-lhe
que não fui fazer nada a Lisboa, que fui ver o Porto-Belenenses, que não tinha nada a ver
com aquilo, etc.. O tipo chamou-me, ao fim de um dia ou dois dias, e disse "vais embora,
eu prefiro pôr lá fora um criminoso sem provas do que ter cá dentro um inocente e tal". E
eu vim-me embora, para o Porto. Em 1959 eu sou preso. Nessa altura, há uma
inauguração qualquer , vem cá o Américo Tomáz e a segurança dele era a PIDE, como é
óbvio. O Américo Tomáz ficava no Infante Sagres, e a PIDE revezava-se, faziam turnos,
à porta do Infante e os que não faziam iam para a PIDE dormir. Nesse dia, ou nessa
noite, em que esteve cá o Tomáz, este Gouveia foi dormir à polícia e foi ver quem é que
estava na prisão. Lá foi ver e encontrou-me. Mandou-me chamar, havia uma escada de
caracol, não sei se ainda há, nós íamos até ao último andar, e no último andar saíamos
numa galeria de ferro, tinha uma passadeira, e tinha diversos gabinetes à volta. Tinha
uma cadeira lá ao fundo, um banco, onde os gajos se sentavam, ou sentava-se alguém
que estava à espera. E quando eu apareço, o gajo dá um grito, levanta o braço, e diz "Ó
camarada Carlos Soares, e tal". Isto à uma e tal da noite, quando me foram buscar à cela.
Bem, com a mesma sem razão, que um caçador atira para um sítio onde vê mexer
árvores, se andar à caça, ele começou a bater-me e acabou ao fim de horas. Sem me
perguntar nada! Nada! Como eu me chamava, porque estava lá, se era do Partido, se
não era... Nada! Só bateu. Depois, a certa e determinada, claro a gente gatinha, foge,
anda e tal, queria beber água, e o gajo mandou-me beber. E como eu era do campismo,
fui um dirigente influente aqui do Movimento Campista do Porto, o gajo dizia-me "bebe
como os campistas e tal e não sei quê", mas eu tinha as mãos todas sujas e meti a boca
numa torneira que tinha num lavatório, ele deu-me um soco por trás rebentou-me isto
tudo. Sem me perguntar nada! Nada! Acordei não sei quando, com uma senhora que
fazia lá limpeza a meter-me bocadinhos de banana pela boca. Sem nada. Sem nada! Só
porque o enganei. Só por isso. Isto dá uma ideia do que era esta gente. Porque era
complicado, não é. Era difícil. O comício mais marcante que houve, e disso ninguém se esquece, foi na Fonte da
Moura, nas eleições do Humberto Delgado, foi uma coisa que pôs esta cidade de
pantanas, não é.... E depois no campo do Salgueiros, também. A noite do Olímpia, foi dos
maiores comícios que se fizeram no Porto; a Rua de Passos Manuel ficou coalhada de
gente de cima a baixo, era o Olímpia cheio e a rua, toda a Rua de Passos Manuel. Não
cabia ninguém. Estávamos ali como protesto, como sinal de protesto, e muito apoio à
oposição, etc. O funeral do Abel Salazar, no Porto, foi uma coisa do outro mundo, sem
corpo, sem o cadáver, porque o cadáver foi roubado na estrada, mas no outro dia fez-se
o funeral..., com milhares e milhares e milhares de pessoas na rua, foi uma coisa
emocionante, e de protesto.
Houve um homem que se chamou Anastácio Ramos, que era um antigo anarquista, ou
anarco-sindicalista, mais propriamente dito, que era funileiro. Foi o homem mais
espectacular que eu conheci em toda a minha vida. Ele deu-se muito bem com o Abel
Salazar; com essa gente que parava ali na Brasileira, e no Rialto, e com outros fez uma
associação, que era a SEN - Sociedade Editora do Norte. Tinham sócios, e era através
dessa sociedade que a gente requisitava livros, toda a gente. A PIDE investe contra isso
e acaba a SEN. E esse Anastácio Ramos faz uma biblioteca itinerante, chamada Afonso
Ribeiro. Pegado ao Piolho, havia um café que era de um homem da oposição, e aí se
juntavam os elementos da direcção dessa biblioteca itinerante, emprestavam livros, a
gente pagava 5 tostões ou 2 tostões ou 3 tostões, já não sei quanto era, e levava o livro
para casa. Se não pagasse também levava. E eram livros, todos legais, mas haviam
sempre os livros do Jorge Amado por baixo, pronto, e por aí. A gente leu "A Mãe", o Jorge
Amado, "Os capitães da areia", Os "Subterrâneos da Liberdade", o Tomás da Fonseca,
livros anti-clericais, etc., etc., a gente leu tudo isso, nessa biblioteca, muito ligada aos
trabalhadores, operários, empregados, aos homens da CP, etc.. Fiz parte durante muitos anos do Movimento Campista, cheguei a ser presidente da
Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Campismo, quando os clubes campistas
eram os homens e mulheres amigos da Natureza; gostavam muito da liberdade. Eu sou
do Clube de Campismo do Porto quase desde a fundação. Muitos camaradas meus
passaram pelo movimento campista, que foi uma grande escola. Mas também tivemos
outros movimentos associativos, tivemos clubes e associações, e nós fizemos um clube
de futebol na Sé, nós fizemos o Rancho da Sé... O 25 de Abril foi uma das coisas mais bonitas que aconteceram neste país. Nessa manhã
ficamos muito perturbados, sem saber se era da esquerda se era da direita. Mas depois,
à tarde, começaram a surgir indicações para arranjar panos vermelhos, e ir com
bandeiras vermelhas para a Praça. Portanto, começamos a comprar, e a rasgar, e a
coser panos vermelhos, e a telefonar para amigos para nos juntarmos na Praça, e a partir
daí nunca mais acabou, fomos tomar a rua, e isto nunca mais parou.
|