Ernesto António Silva
Dados pessoais, infância, escolaridade
O meu nome é Ernesto António Silva e nasci a 21 de Julho de 1947, em Santa Marinha,
Vila Nova de Gaia. O meu pai era António Gonçalves da Silva e a minha mãe Cecília
Adelaide Marques da Silva. O meu pai foi jornalista no Jornal de Notícias, acumulando
também com o trabalho na Biblioteca Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia. A minha
mãe era operária num armazém de Vinho do Porto Borges e Irmão. Com o emprego do
meu pai começamos a ter um certo bem estar na vida, por isso a minha mãe deixou de
trabalhar e dedicou o seu tempo a cuidar dos filhos.
Mas o meu pai morreu de repente, com um problema do fígado, aos 35 anos, quando eu
tinha 9 anos. Como nenhum de nós tinha qualquer assistência, nem pensão, nem nada,
ficámos numa situação um bocado complicada. A minha mãe teve de regressar a
trabalhar como operária nos armazéns de Vinho do Porto.
O meu pai, com o emprego que tinha como jornalista, tinha ganho uns certos
conhecimentos, nomeadamente o Governador Civil do Porto, na altura, Brito e Cunha
Com a morte do meu pai ele tomou compromisso pela nossa educação - minha e do meu
irmão. E foi através dele que eu fui para o Colégio dos Salesianos, para o qual o meu
irmão iria mais tarde, quando teve idade. No colégio tirei o curso de Artes Gráficas, fiz
exame na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis.
O Colégio dos Salesianos funcionava em regime de internato. Levantávamo-nos às 6 e
meia. Das 7 às 7 e meia tínhamos meia hora de estudo, depois tínhamos missa das 7 e
meia às 8 e tal. Estudávamos a história da Igreja e depois havia concursos entre as
escolas dos Salesianos. No ano em que participei até ganhei o concurso a nível nacional,
por isso era o que dominava melhor a história da Igreja e a história do Catolicismo.
Já no curso, tínhamos uma parte prática, uma parte nas oficinas. A minha mãe ia-me
visitar ao Domingo e durante as férias eu ia a casa, na Páscoa, Natal e nas férias
grandes. No Domingo a gente ia passear, saíamos todos juntos por turmas. Estive
durante 7 anos neste colégio, dos 9 aos 16 anos.
As oficinas do colégio, que serviam de formação aos alunos, também trabalhavam para o
mercado, com o que de mais moderno se via nas artes gráficas daquela altura, a
chamada composição mecânica. Naquela altura nós tínhamos a colaboração de algumas
pessoas de fora, entre elas o subchefe dos serviços gráficos do Comércio do Porto. É
através dele que, quando acabo o curso, faço a ponte para o Comércio do Porto.
Depois, comecei a estudar à noite, para tirar a equivalência ao liceu, na Escola Soares
dos Reis e, além disso, fui desenvolver mais o meu francês, no Instituto de Francês.
Actividade Profissional
Quando comecei a trabalhar no Comércio do Porto já havia contrato colectivo de trabalho.
Os gráficos eram, entre os operários, os mais evoluídos, porque, no mínimo, tinham de
saber ler e escrever. Aliás, a Liga das Artes Gráficas no Porto é criada já em 1890.
O Comércio do Porto tinha o núcleo do jornal, que era a imprensa diária, e o núcleo da
Casa de Obras, que fazia livros e outro tipo de trabalhos. Eu entrei a trabalhar na Casa
de Obras. Lá trabalhava-se 48 horas por semana, 7 horas e tal por dia e ainda no Sábado
da parte da manhã.
Eu morava em Gaia, levantava-me normalmente às 7 e meia. Vinha de autocarro até São
Bento. O Comércio do Porto era na Avenida dos Aliados. Tínhamos o Notícias também ali e o 1º
de Janeiro, em Santa Catarina. Era o suficiente para pôr uma baixa diferente. Os jornais
fechavam pelas 2, 3 horas da manhã e afixavam painéis à porta com as últimas notícias,
o que dava sempre um certo movimento. Normalmente ia almoçar a casa porque tinha
tempo. Trabalhava das 8 e meia à meia-hora e depois das 2 às 5 e meia ou às 6. Trabalhava-
se ao dia e recebia-se à semana.
O Comércio do Porto devia ter, no total, 300, 350 trabalhadores. Na Casa de Obras
trabalhariam à volta de 60 pessoas. O meu serviço era de compositor mecânico. Batia-se
num teclado que reunia uma matriz, que depois recebia um jacto de chumbo e ia saindo
linha a linha. A composição mecânica durou até ao princípio da década de 80, quando
começou a aparecer a primeira informática com fotocomposição. Hoje é diferente.
Entrei a trabalhar com estatuto de aprendiz, mas durante o primeiro ano aprendi a fazer a
mesma coisa que os outros faziam. Quando faço um ano no Comércio do Porto, entendi que devia
ganhar tanto quanto os outros. Eles ganhavam, não sei se era mais 10$ por dia ou 20$
por semana. Cheguei a colocar o problema ao chefe, ele disse que resolvia mas nunca
mais resolvia.
Então eu procurei e arranjei uma outra empresa que me iria pagar mais. Fui então
chamado ao director e administrador do Comércio, que era da família Seara Cardoso,
que me garantiu que eu começaria a ganhar tanto quanto os meus colegas. Quando
chegou a altura de receber, o pagador chamou-me mas ainda não estava o aumento que
me tinham prometido. E eu disse que não recebia e não assinava o recibo, o que na
altura era uma afronta. Fui chamado a um filho do director mas mesmo assim não assinei
enquanto não veio o aumento.
Eu fico um ano ou dois na Casa de Obras mas depois passo mesmo para o jornal.
Enquanto que na Casa de Obras havia sempre dia de descanso, no jornal tinha de se
trabalhar também ao sábado e domingo. Passamos a ter um regime diferente de
descanso.
Serviço Militar
Em 1968 vou cumprir serviço militar, que se prolonga por 39 meses, até 1971. Sou
incorporado nas Caldas da Rainha, onde faço juramento de bandeira à porta fechada.
Naquela altura os juramentos de bandeira eram autênticas romarias, mas dá-se o
incidente de Salazar, quando ele cai da cadeira, por isso todos os quartéis ficam de
prevenção. Sou incorporado em Julho e em Outubro vou para a especialidade de
administração militar, em Leiria. Estou em Leiria mais 3 meses de recruta e depois faço a
especialidade e saio furriel miliciano de administração militar.
No final de 1968, princípio de 1969 vou para Viseu. Faço ainda uma recruta e sou integrado no
comando militar de Viseu. O Comandante da Zona Militar de Viseu, normalmente o oficial
mais antigo, com a patente mais elevada, era responsável por todos os estabelecimentos
militares em Viseu. Nessa zona havia na altura a reclusão militar, o Tribunal Militar, o
Distrito de Recrutamento e o quartel. Eu fico adstrito ao
Comando Militar que vai assegurar depois as honras fúnebres no funeral de Salazar, em 1969. Era
o Comando Militar que tinha por missão organizar os funerais daqueles que morriam na
Guerra Colonial. Enviávamos um destacamento ao cemitério para fazer as honras fúnebres. O que
me marcava era o conformismo com que as famílias aceitavam a morte, sem o mínimo de
revolta. Em média, em Viseu, fazíamos 2, 3, às vezes 4 ou mais funerais por mês.
Também éramos nós que tratávamos das licenças dos emigrantes. Havia muita gente
que ia para o estrangeiro com uma licença de turista e depois chegava lá, arranjava um
emprego e pedia uma licença definitiva, de emigrante. Não sei se era até aos 45 anos
que os processos dos militares continuavam nos quartéis. Era o chamado período de
disponibilidade.
Em 1969 temos as eleições. É também a altura da luta dos estudantes, com a flor, em
Coimbra. Era obrigatório o Comando Militar fazer um relatório sobre a situação social.
Havia dois comandantes militares, um que era perfeitamente ligado ao regime, também
Comandante da Legião e Presidente do Tribunal, e outro que era o Comandante mais
antigo, um homem mais liberal. Quando este estava doente, o Comandante da Legião
levava esses relatórios todos para a Legião e era lá que os fazia, ou mandava fazer.
Quando era o mais velho, quem fazia as informações era eu. Na altura descobri uma
participação que o Comandante da Legião tinha feito de um alferes que era do Porto, que
se relacionava muito com os sectores da oposição. Eu avisei-o e sei que depois veio lá
um brigadeiro porque instauraram um processo.
Actividade Social e Política
Em 1971 volto para o Porto e continuo a trabalhar no Comércio do Porto, só que desta
vez no turno da noite. O turno da noite era uma equipa mais forte, fixa, que entrava às 8
horas da noite e saía às 2 horas da manhã. Nessa altura sai um Decreto-Lei que ainda
hoje está em vigor, o Decreto 409/71, sobre o horário de trabalho. Diz que o trabalho
prestado durante a noite, por ser considerado mais penoso, deve ser pago em mais 25%
do que o trabalho prestado durante o dia. Nós entendíamos que tínhamos direito ao
subsídio de trabalho nocturno, simplesmente a Lei diz que "a trabalho correspondente
realizado durante o dia". Nós trabalhávamos 36 horas, enquanto o turno diurno trabalhava
48, e eles quiseram fazer a equiparação dizendo que o trabalho não era igual e que os
25% já eram pagos no horário. Isso deu uma certa movimentação. Sabíamos que o
Ministro Silva Pinto vinha ao Porto e então combinámos todos os 3 jornais ir esperá-lo ao
Instituto Nacional do Trabalho. À sua chegada estavam à sua espera 60 ou 70 pessoas.
Foi uma comissão de 3, na qual eu também fui, falar com ele e dissemos qual era o
problema. Ele, claro, desprevenido, com tanta gente, deu-nos a razão e dispôs-se a
resolver o problema. Outra ocasião exigimos que o sindicato nos resolvesse o problema.
Chegámos a ir a uma entrevista ao escritório do Francisco Sá Carneiro, na altura
Deputado da Ala Liberal, expor o problema, que ele depois levantou na Assembleia. As
coisas chegaram a aquecer um bocado.
Houve uma altura que no Comércio queríamos um aumento salarial e a administração
não nos dava. Então nós combinámos uma forma de luta que era andar para trás, a
chamada Greve de Zelo. Por isso, o jornal tinha de sair com 16 páginas, chegava às 2
horas da manhã e só havia 8 páginas feitas. E andámos assim 2 ou 3 anos. E depois
havia aqueles que não eram capazes, que às vezes tinham medo. A esses, a gente
pegava no que já tinham feito e atirávamos à caldeira do chumbo e obrigávamo-los a
fazer de novo, que era uma forma de atrasar o jornal. Andámos assim até conseguirmos.
E conseguimos, não sei se foram 5$ por dia.
Havia um prelo no qual se tiravam 7 provas: 3 ou 4 eram para ir para a censura e depois, é
claro, era uma para o director do jornal, outra para a redacção, outra para a revisão...
Havia notícias mediáticas que tinham de sair e eram censuradas de um dia para o outro.
Havia outras, como os editoriais ou os artigos de opinião, que às vezes a censura tinha lá
15 dias, um mês. Acontecia que muitas vezes havia um jornal para sair e tínhamos lá dois
em chumbo. Alguns textos vinham pura e simplesmente proibidos, outros vinham com
alguns cortes. Qualquer trabalhador tinha acesso aos textos que estavam lá, e
normalmente, como se costuma dizer, "o fruto proibido é o mais apetecido", e a gente às
vezes podia não ler aquilo que era publicado mas o que era proibido toda a gente ia ler.
Isso também ajudou à minha formação.
Nos textos sobre a Guerra Colonial eles eram muito rigorosos. O Comércio do Porto deu
uma notícia de um problema na Guiné e foi suspenso 3 dias. A censura também
controlava as agências mas às vezes havia coisas que passavam.
No dia 25 de Abril de 1974 fomos chamados mais cedo ao jornal. Sabia-se que se passava
qualquer coisa mas não havia informações em concreto. Há uma manifestação, há
pessoas que vêm à rua já no dia 25 de tarde, na Avenida dos Aliados. A polícia ainda
tentou controlar mas resultou em pedrada, com as pedras de basalto que decoram os
passeios. Nos dias seguintes acaba-se a censura, acaba-se tudo.
Aquando da abertura marcelista estávamos a preparar uma lista para o sindicato. São 5
nomes indicados, entre os quais estou eu. Um outro era o Armando Teixeira da Silva.
Essa lista não se chegou a concretizar porque aparece o 25 de Abril, mas é na base
dessas pessoas que aparece a primeira comissão directiva do sindicato. Em 29 de Abril,
os dirigentes anteriores entregaram-nos o sindicato. As primeiras eleições foram logo em
Outubro de 1974.
Naquela altura, no sector gráfico tivemos cerca de 15 cooperativas. A maior parte das
cooperativas, contrariamente à versão que correu, formaram-se porque os empresários
abandonaram as empresas, por isso os trabalhadores organizaram-se para manter as
empresas a trabalhar. O próprio poder político incentivava a participação dos cidadãos.
Mas as pessoas não estavam preparadas, e muitas das cooperativas não conseguiram
singrar por falta de um mínimo de disciplina.
A partir do 25 de Novembro de 1975, e com os primeiros governos da chamada contra-
revolução, as medidas governamentais começaram a complicar-se e deixou de
haver um apoio muito efectivo às cooperativas.
Depois, começam os problemas com os salários em atraso. Com falta de pagamento de
salário os problemas complicam-se, porque é quando os trabalhadores se radicalizam
muito. Não receber salário provoca uma reacção às vezes muito mais violenta até das
pessoas que não têm consciência sindical, política, etc. E há sempre uma tendência para
fazer os trabalhadores pagarem a crise.
A meio da década de 80 consegue-se ultrapassar o problema dos salários em atraso. Na
década de 90, a situação económica também permite o desenvolvimento daquelas
reivindicações que os trabalhadores colocavam. A gente consegue as 45 horas no 25 de
Abril de 1974, e as 40 em 1996. No caso concreto dos gráficos, já estávamos com as 41
horas, quando surge a Lei das 40 horas em 1996.
Actividade Sindical
A partir de 1974 sou eleito delegado sindical no Comércio do Porto e entretanto assumo
funções na comissão directiva que prepara as eleições de Outubro de 1974. Depois faço
parte dos primeiros corpos gerentes do sindicato. Como dirigente continuo a ir trabalhar
ao jornal. A partir de 1976/1977 assumo o sindicato a tempo inteiro embora talvez até 1980 ainda
fosse trabalhar 1 dia. O contrato colectivo de trabalho da imprensa é muito favorável
porque dá um crédito de 15 dias por mês ao serviço do sindicato, enquanto que na lei
sindical são 4 dias. E temos para os delegados sindicais 36 horas de actividade sindical,
enquanto a lei só permite 8 horas.
No final de 1975, a sede da União dos Sindicatos foi assaltada por manifestantes que tinham ido apoiar o
Pires Veloso. Um primeiro pelotão de militares vem ao local e pretende abrir fogo sobre
os manifestantes. Nós não estivemos de acordo. Depois de este primeiro pelotão ir
embora, aparece um segundo cuja primeira preocupação do comandante foi passar as
instalações a pente fino, para ver se nós tínhamos armas. Depois não fez nada.
Os manifestantes conseguem assaltar o 1º andar, que eram salas de reunião e arquivo.
Esse pelotão chega a lançar gás lacrimogéneo para afastar os assaltantes mas como
estava vento e os vidros estavam partidos, o gás entrou no edifício, e nós é que ainda
tivemos que dar assistência aos militares. Os outros sindicatos entretanto começaram a
fazer contactos e às 7 e meia da manhã do dia seguinte, os trabalhadores, em vez de
irem trabalhar, vieram limpar a rua. Foram os trabalhadores que resolveram a situação.
Em todas as grandes conquistas laborais é determinante o movimento sindical unido,
mas muitos trabalhadores consideraram normal o aparecimento da UGT. Começou com o
Movimento da Carta Aberta, que depois daria origem à UGT em 1977, no célebre congresso
em que esteve o Sá Carneiro, o Freitas do Amaral e o Mário Soares. Em 1977, aqui, neste
Sindicato dos Gráficos, houve eleições . Havia uma lista afecta à CGTP e uma lista afecta
à UGT. A lista da CGTP ganhou, e aqueles que perderam, a seguir foram
constituir um sindicato da UGT.
O fascismo também impedia sindicatos verticais, obrigava a existência de sindicatos de
profissões. Com a verticalização dos sindicatos hoje abrangemos os trabalhadores todos,
desde que a árvore é abatida na floresta até sair o livro ou impresso. E havia 11
sindicatos. Essa verticalização teve várias fases: em 1976 reunimos todos os sindicatos
numa federação; em 1980 fizemos já 3 sindicatos verticais a nível nacional, Norte, Centro e
Sul, com uma federação que os liga.
Por volta de 1980 entrei como dirigente na União dos Sindicatos do Porto, e ainda hoje
sou. Neste momento assumo a responsabilidade de ser o Coordenador Nacional do
Sindicato.
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