José Vieira
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me José Vieira, nasci a 16 de Outubro de 1920, em Resende. O meu pai, Manuel
Vieira, e a minha mãe, Maria de Jesus, trabalhavam no campo, à jorna, em terras
arrendadas. Quando tinha 7 anos, o meu pai caiu de um castanheiro e ficou paralisado da
cinta para baixo. Passado algum tempo acabou por morrer, deixando a minha mãe,
sozinha, com 4 filhos, a ganhar 2 escudos por dia. A vizinhança e os meus padrinhos é
que a ajudaram. Os meus padrinhos tinham umas terras e punham pessoal a trabalhar.
Metiam às 10 e às 20 pessoas a trabalhar ao dia e faziam caldeirões de comida para lhes
dar. A comida que sobrava dos trabalhadores era para nós. Os meus irmãos mais novos
morreram devido à má alimentação, só ficaram os dois mais velhos. Eu era o mais velho.
Nunca aprendi a ler e escrever, nunca fui à escola.
Serviço Militar
Fui para a tropa em 1941/1942, para Lamego, e tive lá um capitão que era muito meu amigo.
Em 1942 estávamos para ser invadidos pelos alemães, derivado à trafulhisse que o Salazar
estava a fazer aos alemães e à Inglaterra, por causa do volfrâmio. Então houve
mobilizações em todo o país. Tudo o que tivesse uma carroça, um cavalo, um carro, foi
tudo mobilizado. As janelas foram tapadas com tiras de papel, para segurar os vidros...
Estava tudo preparado para o que houvesse. Então, eu já tinha vindo embora mas fui
outra vez chamado. No dia em que era para sairmos para o Vale de Santarém, para não
deixar invadir Lisboa, o capitão chamou-me para me dizer que eu não ia, que ia ficar. Eu
não gostei muito e ele ficou zangado comigo. Depois mandou-me embora, para casa. Foi
assim que me safei.
Na tropa também conheci colegas que tinham estado na Guerra Civil de Espanha e me
contaram muitas histórias do que lá se passou. Havia duas equipas: a equipa de
voluntários nossos que foram lá combater a favor dos governamentais; e havia outros que
o Salazar mandou para lá.
Actividade Profissional
Com 9 anos saí da beira da minha mãe e fui com uns tios meus que eram lavradores;
andei por lá a tomar conta do gado. Até que, às tantas, vim com a minha mãe e o meu
irmão para baixo, para o Porto, tinha eu uns 14 anos. Fui trabalhar para um lavrador onde
estive 40 dias, mas estava a ser massacrado e lembrava-me dos meus tios, na aldeia, e
resolvi voltar para Resende. Meti-me ao caminho a pé, seguindo a linha de comboio.
Fiquei com eles durante um ano, um ano e tal, sem nunca me pagarem. Depois tive uma
zanga com a minha tia, à conta de uma rapariga, e decidi voltar para o Porto. Foi então
que me pagaram uma bagatela.
Quando cheguei ao Porto fui trabalhar para um lavrador que havia frente à Igreja de
Lordelo, como rapaz. Fiquei ali 5 anos, até ir para a tropa. Era um lavrador que não criava
vacas, só tinha bois. Então, todos os meses mandava bois para o matadouro. Quer dizer,
comprava aqueles bois cansados, engordava-os e mandava-os para o matadouro. Eu é
que os levava a pé, de Lordelo até à Corujeira, onde ficava o matadouro. Também
trabalhava a terra. Pegava na charrua para lavrar, no sachador, que era puxado por um
boi, nas foicinhas, nas sacholas... Levantáva-me às vezes ainda de noite e ía ajeitar o
gado e cortar erva para dar de comer ao gado. Quem mandava em mim era o moço
grande, que recebia ordens directamente do patrão. Mas eu não gostava dele e tentava
sempre fazer o trabalho mais depressa do que ele, para o desafiar. Uma vez, por causa
dele, disse ao patrão que me ia embora. Mas o patrão despediu o moço grande e, a partir
daí fiquei eu como moço grande. Passei a ganhar só mais 5 escudos, não era muito.
Passei de 45 para 50$. Mas lá tínhamos comida, dormida e roupa lavada.
A minha mãe trabalhava numa padaria lá perto. Depois teve uma doença e foi para casa
de um irmão, que morava na Arrábida. Depois melhorou e foi para Gomes da Costa,
servir para uma casa particular.
Eu estava muito bem em Lordelo, tinha uns tostõesitos, tinha comprado um relógio, tinha
comprado umas roupinhas... E havia um lavrador a quem chamavam o Cartola de
Lordelo, mesmo pegado à Junta, que era muito meu amigo. Quando tive de ir para a
tropa, ele ofereceu-se para guardar as minhas coisas no quarto do seu filho, enquanto eu
lá estivesse. Eu aceitei. Fiz a mala e deixei-a no quarto dos moços para a passar no dia
seguinte para lá. Nessa noite os moços roubaram-me tudo, deixaram só um fatinho mais
antigo, que eu tinha.
Naquele tempo os moços de lavoura tinham que ir à noite à água choca, mas eu nunca
andei nisso. Só de Sábado para Domingo e de Domingo para Segunda é que não iam. De
resto todas as noites tinham de se levantar às 4 horas da manhã para ir buscar a água
choca às fossas. Depois, alguns lavradores usavam-na como estrume, para a hortaliça,
outros deitavam-na fora.
Ainda solteiro fui para uma quinta que era ali à beira do campo do Boavista, chamavam-
lhe a Quinta do Olho Marinho. Então tinham ali 10 homens tipo jornaleiros, a trabalhar
efectivo, a ganhar ao dia. E fui para ali já a ganhar 15$ por dia. Mas tinha que comer
deles, comia tudo... Deixavam-me lá comer uma côdea, faziam aquilo barato, mas tinha
que comer deles. Então ali já comecei a juntar uns tostões. Para dormir tínhamos umas
camas feitas com umas enxergas, com uns sacos de serapilheira, que era uns colchões
de dormir... Depois dali resolvi casar e passei para outra quinta, como feitor.
A minha esposa conheci-a na Avenida Marechal Gomes da Costa, onde ela era criada,
do Dr. Sousa Machado, que chegou a ser vereador da Câmara do Porto. Casei com 24
anos.
Na Avenida Marechal Gomes da Costa havia uma quinta onde está hoje a Igreja do Cristo
Rei. Foi para essa quinta que fui como feitor. Tinha 5 criados. Eu todas as semanas fazia
a escrita, com a ajuda de um primo meu. Se havia lucros, o patrão ficava logo com eles,
se havia prejuízo, muitas vezes tinha eu que o suportar até que o patrão o pagasse.
Pagava só quando havia lucros. Eu tinha que me desenrascar: tinha que pagar ao
pessoal, tinha que pagar tudo. O que vendesse ao longo da semana tinha de dar para
cobrir as despesas, senão tinha eu que adiantar o dinheiro. O patrão era o senhor Ramalho.
A Quinta de Serralves era dele, e do outro lado da Avenida Marechal Gomes da Costa era a quinta que eu
estava a fazer, que era conhecida pela Quinta do Ramalho.
Na altura do racionamento eu não tinha problemas, na quinta tinha tudo. Os 5 criados
traziam as senhas de racionamento para o arroz, o azeite, o açúcar... de resto tinha tudo.
Regularmente o meu patrão tinha que dar contas ao manifesto, tinha que manifestar o
que tinha à fiscalização. Eles faziam as contas e dava-lhe "x" quilos, e o resto tinha que
entregar. Entregava e depois era mandado nos comboios carregados para Espanha
como "Sobras de Portugal". Eu fazia as coisas de outra forma. Digamos que eu tinha 10
carros de milho, só manifestava 5. Os outros 5 escondia e vendia debaixo de mão. Muitas
vezes fazia fornadas em casa, para servir os amigos de pão. Depois, aqui em Lordelo
havia uma moagem, e eu estava combinado com o moleiro: vendia-lhe dois carros de
milho e um carro de centeio. Combinado com ele, de manhã cedo, metia uns caixões
grandes nos carros de bois e por cima "botava-lhes" uma hortaliças, para fazer que ia
vender ao Mercado do Anjo, mas dentro levava sacos de 101 quilos para moer. Eu tinha
uma senha para moer "x" quilos, mas combinado com o moleiro, comprava uma senha e ia
duas ou três vezes moer. A senha andava, ia e vinha, e eu ia-me safando assim. Como
feitor eu ganhava 60$ por mês, do patrão, mas desta forma acabava por ganhar muito
mais. A minha mulher ganhava 45$ mas trabalhava muito mais do que eu. Ela era criada
por isso cozinhava a lenha, fazia o comer para os criados, lavava a roupa deles, isso
tudo. Os criados tinham cama, mesa e roupa lavada.
O meu patrão depois acabou por esbanjar tudo o que tinha, acabou por dar cabo do
dinheiro todo. Foi por isso que eu vim embora, mas arranjei logo trabalho, na F. Brindley.
Era uma empresa de serralharia. Fazíamos toda a qualidade de máquinas: teares...
Fizemos uma máquina para a Fábrica do Caima que entravam os toros numa ponta e da
outra ponta saía já enfardada a pasta de papel. Eu fui para lá como trabalhador, mas ao
fim de 3 anos era encarregado. Quando comecei a trabalhar lá ganhava 140 com 2
tostões por semana, como trabalhador. Quando passei a encarregado pouco mais recebi,
mas trabalhava muito mais. Andei lá um ano a pegar às 7 da manhã e a sair à meia-
noite. As horas extra eram pagas mas havia aquela história de 50% das horas extra irem
para a FNAT. Não havia contrato colectivo de trabalho. Na Brindley trabalhei muitos anos
na fundição. Lá só trabalhavam homens, não havia mulheres, mas às vezes havia uns
rapazitos pequenos que iam para aprender a arte. Uns iam para a secção de tornos e
outros para a secção de montagem de teares. Alguns jovens também iam para lá, pelas
escolas, uma temporada, fazer uma espécie de formação profissional, mas não eram
pagos. Alguns até pagavam para poder estar lá.
Foi por esta altura que se deu a chegada do Humberto Delgado ao Porto. Eu e os meus
colegas deixamos o trabalho e viemos todos para a Praça, mas não tivemos problemas
por isso na fábrica. Outra coisa que eu organizei lá foi nunca trabalhar no 1º de Maio.
Começámos a organizar um passeio anual, quotizávamos todo o ano para esse passeio.
Para onde fossemos a PIDE seguia-nos.
Só comecei a ter problemas quando meteram um mestre geral que não percebia nada
daquilo e era duro para o pessoal. As pessoas que se esqueciam de marcar o ponto, por
exemplo, eram obrigadas a trabalhar de graça. Um dia a conversar porta dentro também
não marco o ponto. Estava a montar um balancé para cortar umas chapas e olho para o
relógio e vejo que o meu cartão estava do outro lado. Eu fui falar ao senhor Alberto e disse-
lhe que se não me deixasse picar o ponto abrisse-me então a porta para eu ir embora,
que não trabalhava de graça. Ele então voltou atrás e disse para eu voltar a trabalhar,
que depois via-se. Nessa quinzena pagaram-me tudo. Na semana seguinte houve um
funeral de um funcionário de lá e as pessoas queriam ir ao funeral. Ele não dispensou,
nomeou um de cada secção a ir ao funeral mas sem ganhar. Eu pedi para dispensar essa
tarde para tratar de problemas pessoais e ele acabou por deixar. Mas o que eu queria era
ir ao funeral e ele no dia seguinte soube que eu lá tinha estado e não gostou. A partir daí
comecei a ter problemas. Quando foi para receber tinham-me descontado 12 horas: as 6
horas que me esqueci de marcar o ponto, e as 6 horas de dispensa para ir ao funeral.
Não assinei nada e não recebi. Então fui-me queixar ao Instituto, mas só me queixei de 6
horas, porque as outras 6 tinha-as eu pedido. Foram, então, 2 senhores à empresa e o
assunto ficou resolvido, mas logo de seguida mandaram-me chamar e fui despedido.
Fui trabalhar, depois para uma oficina na Rua das Condominhas. E depois dali vim para
outra oficina que era ali à beira do cemitério de Lordelo, uma fundição de metal, era o
Cara de Homem. Mas aquilo era uma escravidão terrível. Para aí fui como servente. A
fundição de metal fazia-se quase todos os dias, a do ferro é que era uma vez por
semana. Os trabalhadores tinham de ir para lá de madrugada para levantar as caixas,
tirar a obra de dentro, encher de areia... A areia é com que se fazem os moldes. Tinha de
estar tudo pronto à hora em que chegavam os artistas, os fundidores, para começar a
montar a obra. Os fundidores fazem os moldes de madeira, que depois são apertados
com essa areia especial. Depois o molde sai direitinho, fica a peça moldada naquela
areia. Aquilo é fechado, depois entra por uma coisa uniforme por ali fora, e espalha-se ali,
e sai a peça feita. Os trabalhadores lidavam com as coisas mais pesadas, como partir o
ferro, acartar para os fornos, botar nos fornos...
Depois eu saí dali e fui trabalhar por minha conta, comecei a fazer uns portões, umas
portas de garagem...E tive um período em que aprendi a arte de jardineiro. Trabalhava na
altura para um senhor Gouveia, que tinha um estaleiro na Afurada. Ele tinha perto da Fonte
da Moura um prédio muito grande e contratou um jardineiro de Lisboa para fazer o jardim.
Eu fui ajudá-lo e então ele sentava-se lá, espetava aqui uma estaca, fazia os desenhos, a
zona dos canteiros, e depois havia a relva que era preciso meter naquela coisada toda
dos canteiros. Eu ajudava-o e depois comecei a criar naquilo. Depois disso fiz muitos
jardins novos.
Quando se deu o 25 de Abril eu estava a trabalhar perto da Fonte da Moura, de
jardineiro. Ao meio dia quando vinha para casa vi o pessoal todo da Alumínia a fugir com
medo do que se passava.
Depois, fui para a Amadora, onde me estabeleci, com um café. Mais tarde passei o café
e agora tenho um bocadinho de terreno para me entreter. Tenho batatas todo o ano,
tenho cebolas, tenho feijão verde, tenho hortaliças, tenho muitas coisas lá ...
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