Rui Cosme
Dados pessoais, infância, escolaridade
O meu nome é Rui Cosme. Nasci em Paranhos, no Porto, em 1936. Os meus pais são
serranos, da Covilhã. Só o meu pai é que trabalhava, era empregado de escritório,
guarda-livros. A minha mãe era doméstica. Quando era solteira chegou a ser professora.
Éramos muitos irmãos, fomos doze.
Durante a última Grande Guerra houve dificuldades de toda a ordem, desde a alimentação, à
roupa e outras coisas. Morávamos na Rua do Alexandre Herculano na esquina com
Duque de Loulé. Nós tivemos de vedar as janelas com umas fitas isolantes para que os
vidros não se partissem no caso de rebentarem bombas, porque havia a ideia que a
cidade do Porto ia ser bombardeada por aviões. Havia o racionamento. Eu recordo-me
que tinha de ir comprar algumas coisas através de senhas. E como éramos vários filhos
tínhamos direito a "x" senhas, outros que só tivessem um ou dois filhos tinham menos,
portanto cada senha correspondia a um gasto, e nós só tínhamos direito a esse gasto.
Lembro-me que a escola tinha uma entrada muito feia, era uma espécie de túnel, havia
um pequeno átrio onde se jogava a bola, uma bola de trapos. Naquela altura só havia
escolas de rapazes e escolas de raparigas, não havia escolas mistas. Depois fui para
Escola Comercial Oliveira Martins. Naquela altura fazíamos muitos jogos. Havia o pião, havia o jogo do lenço, havia a cabra-
cega, havia uma série de jogos, alguns ainda hoje se praticam. Havia a patela que era
jogada nuns quadros desenhados no chão, e com um tacão de sapato de homem, cada jogador
tinha que fazer um certo desenho naqueles quadros que estavam desenhados no chão.
A "rede dos cães" que é um jogo muito engraçado, fazia-se um grupo, nós tínhamos uma
corda que as quatro pessoas seguravam, duas na ponta e duas no meio e percorríamos o
espaço à cata dos outros e quando apanhávamos um, esse um ia para a corda... ficava connosco e
também engrossava, o grupo até que fossem todos apanhados. O "Bate fica" é aquele jogo que as pessoas depois de serem tocadas por outra têm de
ficar estática. Não se pode mexer mais.
Havia o pião. Havia a volta a Portugal de sameiras: nós fazíamos um desenho no chão,
enchíamos as sameiras com qualquer coisa para as sameiras ficarem um bocado mais
pesadas ou com pês ou com resina. E as sameiras tinham um número, em cada sameira
com o seu número, colocado e colado por cima de maneira que se identificava a sameira
de cada um de nós. Podíamos concorrer com duas ou três ou quatro sameiras e depois
procurávamos bater uma sameira na outra para mandar a outra fora da linha e esta ia atrás à
meta, percorrer outra vez o mesmo percurso.
Depois mais tarde apareceu na cidade do Porto um jogo interessante que se chamava
"futebol de botões" e isso até se praticava no Oliveira Martins. E fazia-se assim uma
espécie de torneio com os do Liceu Alexandre Herculano: nós íamos lá jogar e eles
vinham jogar aqui. Os botões eram os jogadores e cada botão tinha a sua função. O
guarda-redes era um botão maior, mais pesado e depois havia um botão mais
pequenininho que servia de bola e os outros botões tinham de tocar. Havia um botão que
tinha uma configuração aguçada numa extremidade o que permitia que se tacasse o outro
botão baixo na ponta e ele deslizava: o botão deslizava e ao deslizar ia bater na bola e
tomava a direcção que a gente imaginava.
Actividade Profissional
Estudei até aos quinze anos e depois comecei a trabalhar.
Na altura tinha-se de começar num lugar que em algumas casas chamavam de grumete,
noutras chamavam praticante, noutras chamavam rapaz de recados. Eu estava a tomar
conta do armazém durante o dia, enquanto o patrão e os viajantes caixeiros iam visitar
os clientes para vender o artigo que tínhamos. Eu tomava conta daquele armazém,
atendia o telefone e atendia as pessoas que viessem, que procurassem qualquer coisa
ali. E depois, nas horas em que o patrão estava, vinha fazer algumas pequenas
cobranças, ia deitar o correio, aqueles pequenos "nadas"... Eu creio que ao fim de um
ano deram-me seis dias de férias. Seis dias porque trabalhava ao sábado. Trabalhava
todo o sábado. Ao fim de três anos deram-me dez dias.
Depois fui para um escritório de um fábrica de camisas. Em 1957 fui para a tropa. Quando eu vim da tropa, em 1959, a empresa onde trabalhara faliu e eu estava
desempregado... Nada! Não tinha direito a coisíssima nenhuma. Inclusivé pedi até ao
governo da altura, expus a minha situação - tinha prestado serviço militar no momento em
que a empresa faliu, portanto, eu não tinha culpa nenhuma da situação e, uma vez que
estive a prestar serviços ao Estado, achava que tinha direito de solicitar um emprego e o
Estado podia ceder. A resposta foi nula.
O arquitecto Morais Soares pai, o antigo proprietário daquela casa dos pastéis de
Chaves, tinha uma série de serviços dactilográficos para fazer e como não tinha
escritório, dava esse trabalho a mim. Portanto, fazia os cadernos de encargos, fazia
aqueles documentos próprios ligados à arquitectura e depois pagava-me, como se costuma
dizer, para o tabaco e para o café.
Estive um período, um ano, numa empresa que também já fechou, que era a Sociedade de Vinhos
Miraflor. Saí de lá porque achei que podia arranjar melhores condições e, então, apareceu um
anúncio num jornal e fui para a Papelaria Azevedo. Tinha, portanto melhores condições de
trabalho e melhores condições económicas. Depois, houve um lugar no jornal O Primeiro
de Janeiro, era para a parte contabilistica da publicidade e eu concorri. Estive lá e daí
passei para o Hotel do Porto.
No Hotel do Porto a certa altura vi que não avançava e que não dava mais, concorri para
a EDP. Para a EDP tive que concorrer já com o curso comercial, porque no Hotel do
Porto não precisei de ter curso comercial, bastou ter um curso de escrituração que já
me aceitaram e o currículo, do trabalho que tinha tido antes. Essas eram as exigências.
Havia guarda-livros que não tinham mais que o 1º ciclo, conheci muitos guarda-livros que
não tinham mais que o 1º ciclo. Tinham traquejo, depois faziam exame ao sindicato, e
ficavam.
Actividade Associativa
A minha primeira actividade associativa foi aos quinze anos, na Juventude Católica do
Porto. Aí participei na direcção, nuns torneios, no teatro, nos jogos de futebol, até que um
dia tive um problema por causa de um jogo de futebol e desisti. Desisti e fui para o
Círculo Católico porque eu fazia parte de um coral que estava a ensaiar lá no Círculo
Católico.
O coral foi numa altura em que se criou um coro ali na Sé, um coro de origem religiosa,
um coro paroquial e convidaram-me. E eu, como gostava de cantar fui para lá, e a partir
daí sempre estive ligado até que acabou. E fiz parte desse coro como dirigente. Mas
aquilo acabou, pronto. Quando verifiquei que ali naquele coro as coisas iriam ficar
paradas, vim aqui para o Órfeão do Porto.
Mas já frequentava o órfeão, não como associado. Já frequentava o órfeão por amizade
que tinha a algumas pessoas e pela permissão que a direcção me concedia, fazia parte
do coral. Na altura estava isto em obras, eu recordo-me que nós estávamos a ensaiar
com guarda-chuvas abertos. Isto reabriu em 1967 e eu em 1969 já fazia parte da
direcção. Portanto, a partir da altura em que vim para aqui sempre participei no Órfeão do
Porto.
Em 1974 houve problemas aqui no Órfeão do Porto e eu, como responsável do coro, entrei nesse problema. O Órfeão
do Porto tinha previsto uma deslocação a Inglaterra, em 1975, para um concurso "Thi
side", no tempo do Dr.Borges Coelho, maestro que foi na altura o maestro criador do
Coral de Letras. Acontece que, se deram aqui algumas confusões, como em quase todas
as colectividades deste género, e a direcção não quis que o Órfeão do Porto fosse a
Inglaterra para que não se pensasse que a revolução tinha tido êxito. Que a direcção na
altura era formada basicamente por pessoas ligadas ao antigo regime, o presidente era
um ex-Mocidade Portuguesa, graduado da Mocidade Portuguesa. E, portanto, criaram um
rebuço para que o Órfeão do Porto fosse a Inglaterra e mais, o Dr. Borges Coelho é, e já na
altura era, membro do Partido Comunista e daí que eles não queriam que o nome do
maestro do Partido Comunista fosse levar o Órfeão do Porto fora. Então fizeram para que
o Órfeão do Porto não fosse. E eu como tinha que explicar ao coral as razões porque isso
estava a acontecer, eu tive que desistir da direcção, demitir-me e explicar aos orfeanistas
o que se passou. A direcção não gostou, naturalmente não iria gostar, e castigou-me.
Tive três meses de castigo.
Houve uma altura em que o jogo de cartas foi realmente o mais influente em termos económicos
para a vivência do órfeão, depois foram os bailes e agora podemos dizer que são as
ajudas que temos tido em termos de subsídios, que nos são concedidos, mas porque
também mostramos que fazemos trabalho e porque que estamos virados para o exterior, que não
estamos só metidos aqui dentro.
Eu também fiz parte da comissão pró-sede do Futebol Clube do Porto. Eles entenderam
criar uma comissão que andaria a recolher fundos para uma sede nova. E que essa sede
poderia ser lá em cima nas instalações do Estádio da Antas. Eu tenho um cunhado que já
fazia parte do Futebol Clube do Porto, porque era na altura membro da assembleia geral,
e fazendo parte da comissão convidou-me. E então nós angariávamos fundos,
chamava-se a Aquisição para os Tijolos, através da venda de bilhetes para quando os
sócios ou adeptos do Futebol Clube do Porto quisessem acompanhar o Futebol Clube do Porto nas saídas.
Outra colectividade em que participei foi o Centro de Cultura Popular. O Centro de
Cultura Popular nasceu por uma necessidade de ocupação dum determinado espaço cultural, o objectivo era
fazer uma ligação directa ao povo sem recorrer a espectáculos a pagar. Por exemplo, nós
rodávamos filmes para crianças, filmes de arte e filmes de recreação. E não havia ali
contrapartidas nenhumas, as colectividades que nos convidavam para fazer esse trabalho
não eram obrigadas, não se sentiam obrigadas a pagar. E fazíamos também para
adultos. Inclusivé houve uma altura em que os militares nos pediram uma colaboração,
naquelas campanhas de dinamização e nós fizemos parte dessas campanhas de
dinamização. Fizemos vários cursos de formação de cinema com um realizador. Era um
dinamarquês, extraordinário. Em pouco tempo ele punha as pessoas a trabalhar naquilo.
Tínhamos uma boa biblioteca, fizemos exposições lá, e depois coordenávamos alguns
espectáculos com muitos organismos. Por exemplo, coordenávamos com palhaços, com
interventores próprios para crianças. Púnhamos também colectividades a trabalhar
connosco, de maneira que elas levassem, por exemplo para Baião, para "cascos de
rolhas", nós chegamos a ir até Santa Marinha do Zêzere, para ali para aqueles lados. E era
assim, a nossa vivência lá! Aquilo existiu até que um dia começou a haver dificuldades
económicas, os sócios já não pagavam, também as pessoas já não iam lá para fazer qualquer trabalho.
Fui fundador do Kart Clube do Norte, com sede nas Oliveiras, na Areosa e proprietário da 1ª Pista de Karting no país,
em Pedrouços, na Maia, e, ainda, fundador duma colectividade
intitulada C.R.I.M.E. - Centro Recreativo de Investigação Mental e Executiva. Esta colectividade era formada por
10 jovens que estudavam alguma coisa sobre crime, faziam exercícios mentais apreciando casos policiais da altura,
com alguma intervenção, como no Caso do Sapateiro da Rua do Sol,
aqui no Porto. Mantivemos ligação com alguns escritores de literatura policial,
quer nacionais, quer estrangeiros, e com a polícia judiciária da altura.
Estas duas colectividades datam por volta de 1960.
Actividade Social e Política
Na manhã do 25 de Abril liguei o rádio e estava a dar marchas, e eu achei estranho, uma,
duas, três, quatro marchas seguidas. A certa altura ouvi não sei o quê e estava um
bocado distraído e já não fui capaz de ouvir tudo, mas ouvi dizer não sei quê "forças
armadas" mas entretanto vim para a rua e não vi nada de extraordinário no percurso de
casa até ao trabalho. O que é certo é que cheguei ao escritório e avancei para os
colegas e perguntei: "Vocês não notam qualquer coisa?" E resolvemos então ligar o
rádio. Ligamos o rádio, e na altura então confirmou-se. Claro que eu aí ainda não estava
muito seguro para me exteriorizar, sei que disse esta frase: " Até que enfim!", mas com
um sentido mais de desabafo. E as pessoas olharam para mim. "Porquê até que enfim?
Até que enfim quê?". "Até que enfim, parece-me que desta vez realmente acabaram com
o Marcelo Caetano." " O quê mataram e tal?". " Não que eu saiba não mataram mas, pelo
menos que está isto entregue aos militares, agora não sei para quê lado isto é que vai
." E aguardamos durante o dia, até que houve a confirmação e ao fim da tarde foi
quando a gente veio para a rua, e fui até lá baixo à Praça. Comecei a ver magotes de
pessoas a dar vivas à liberdade e tal e vim aqui para o órfeão. E nesse dia, por acaso,
era dia de ensaio do coral. Foi quando o Borges Coelho apareceu também todo
sorridente, todo satisfeito. Fizemos a nossa festinha aqui, como se costuma dizer. Foi
extraordinário realmente aquilo, para mim foi uma das datas que não me esquece.
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