António Manuel Andrade
Dados pessoais, infância, escolaridade
Eu chamo-me António Manuel Andrade, nasci em Celorico de Bastos, mesmo na
vila, a 7 de Junho de 1935, filho de gente humilde. Os meus pais não eram muito jovens e, pela
parte do meu pai, havia uma filha, que morreu com trinta e alguns anos. Nessa altura, por
volta dos anos 30 e 40, era muita a mortalidade, havia muitos problemas e as pessoas
morriam muito novas. Da parte da minha mãe, tenho um irmão, que tem hoje 72 anos, a
caminho dos 73.
Frequentei a escola, mas só fiz a terceira classe e depois, já em adulto, vim fazer
a quarta aqui ao Porto, no Bonjardim. Eu nunca fui um bom aluno na escola, mas para
além disso, a escola também não era muito importante. Depois, tinha as minhas
brincadeiras, como todos os rapazes daquela altura.
O meu pai escrevia e lia, mas não sei se fez a escola primária ou não. A minha
mãe é que não. Quanto à religião, a minha mãe era católica. O meu pai dava-se muito
bem com o pároco da Igreja, até eram amigos, mas a religião, para ele, não era muito
importante, não praticava, não ligava. Eu ia para a catequese por vontade da minha mãe.
Actividade Profissional
Vim para o Porto mais ou menos com doze, treze anos. Conheci uma família
muito conceituada na cidade do Porto, a família dos Fonsecas e Castros, que eram donos
de umas fábricas, numa das quais eu fui empregado. Foi por recomendação duma minha
tia. Aí trabalhei seguramente cerca de 45 anos, foi a primeira e a última casa que
conheci. Chamava-se Serra, depois passou a Lacose e hoje é Lacose Sotinco.
De princípio, fazia dias em casa desses patrões. Nas horas vagas olhava pelos
jardins, enfim, fazia umas coisas. Depois, acabei por sair, porque eles moravam em
Pedras Rubras, comecei os namoricos e acabei por me instalar na Rua de Serpa Pinto,
tinha os meus 16 anos. Fiquei lá hospedado, numa senhora que morava ao lado da
fábrica, onde vivi muitos anos.
Na altura, eu já tinha uma bicicleta, porque, naquele tempo, quando ainda estava
em Pedras Rubras, comprei um relógio de pulso, um despertador para acordar a horas e
uma bicicleta, para me poder deslocar. Tive uns patrões que foram os meus segundos
pais, que me iam amealhando o ordenado. O meu primeiro ordenado foi de 10$00, por
dia. Em 1944, 1945 era bastante dinheiro, porque era cama, mesa e roupa lavada. Eram 300
a 400$00 por mês, sensivelmente.
Mesmo depois, quando veio a tropa, eles não se esqueceram de mim. De vez em
quando, lá ia um vale de correio. Assentei praça em Cavalaria 7, em Lisboa, e de vez em
quando lá me aparecia o vale do senhor Fonseca e Castro. Ele foi internacional de
futebol do Académica. Era o Coelho, Manuel da Fonseca e Castro Coelho.
Serviço Militar
A tropa deu-me bons e maus bocados, como é natural em todas as coisas. Passei
uma recruta um bocadinho amarga, mas, por outro lado, houve um rapaz da minha
infância, filho de um guarda nacional republicano em Celorico de Bastos, que era o
Teixeira, e que era impedido do bar dos oficiais, que tratou logo de me encaminhar e
assim passei a responsável do bar dos oficiais. Aí tinha tudo, eu saía à civil do quartel. A
cavalaria sete era das coisas mais rigorosas que havia em Lisboa, mas eu tinha
privilégios, porque tive conhecimentos do Porto, um sapateiro que foi colega de um
tenente, na Cavalaria 6 no Porto, e que me recomendou ao tenente Valente, que até me
ajudou quando tive problemas com um furriel.
Entretanto, acabei o tempo de tropa, regressei às hostes ao Porto, tinha uns
namoricos e acabei por casar. Isto há 45 anos e tenho uma filha com 38. Casei, logo que
saí da tropa, porque a minha vida era estar hospedado, com limitações.
Actividade Social e Política
Dos tempos de jovem, lembro-me do comício do Norton de Matos, na Fonte da
Moura, num campo hípico, que havia ali e que agora não existe. Eu não sei, mas talvez
viesse um pouco de família, o meu pai e o meu avô eram republicanos, andaram fugidos
no tempo da Monarquia e talvez por isso fui ganhando alguma consciência. Comecei a
dedicar-me um pouco, custou-me uns amargos de boca aqui e ali, mas enfim. Depois
lembro-me também das campanhas com aquele avental que ele usava. Aquilo não era
um avental, era uma veste qualquer com uma cruz, talvez uma cruz maçónica, não sei se
era se não, mas lembro-me disso. As eleições do Humberto Delgado foram depois. Aí passei uns maus bocados,
porque cheguei a ser preso. Houve um comício no Cine Vitória. A polícia, a cavalaria,
invadiu aquilo e passei uma noite sobre o telhado de zinco, porque fugimos lá para cima,
pela casa das máquinas. Eu e uns amigos ficámos lá até de madrugada e só depois de
vermos aquilo muito calmo é que começámos a descer do telhado, mas, quando
chegámos cá abaixo, tínhamos a polícia à espera.
Foi nessa altura que foi presa mais uma vez a Virgínia Moura e o marido. Mas
também aí tive sorte, apesar de tudo, porque um rapaz amigo, o Zé Alfaiate, que era
telefonista na PIDE, lá na Rua do Heroísmo, junto ao Cemitério do Prado, fez o que pôde
por mim. Aí fui interrogado por um chefe de brigadas, o Seixas e um guarda nacional
republicano. Depois do interrogatório deixaram-me na cela. Nesse dia não comi nada e
eu estava com fome, mas, por volta das duas horas da manhã do dia seguinte, o guarda
republicano abriu-me a cela e pôs-me em liberdade. As últimas palavras que eu percebi
do agente foram: "não estiveste cá, não sabes de nada, e não dizes nada a ninguém."
Comecei por ser militante do Seara Nova, de Aveiro, ainda era solteiro, era muito
novo. Depois da Seara Nova em Aveiro, viemos acampar aqui no barracão de S. Dinis,
onde é o mercado do Bom Sucesso, tínhamos lá um barracão grande onde por sinal
estava tudo, o PC, os homens do PSD e alguns do CDS, do MDP estava lá toda essa
gente, porque nessa altura não havia guerra política, todos faziam parte dum todo. Fiz lá
bons amigos, que conservo ainda hoje, o Assis, que foi presidente em Amarante, por
exemplo.
Entretanto, o MDP acabou e eu fiquei como independente na Junta de Freguesia
de Ramalde Nessa altura, em 1982, se bem me lembro, eu era da Assembleia de
Freguesia. A bancada independente era constituída por mim e pelo Dr. José Ribeiro.
Depois, deixei a assembleia e fui para o executivo. A maioria era PSD, seguia-se
o PS, a UDP na altura, com um elemento, e o CDS, muito bem representado com um
advogado, com uma inteligência fantástica, o Dr. Barros.
No executivo, a minha paixão era servir tudo e todos, deixar também ai a camisola
do partido e servir e resolver os problemas. Preocupava-me mais com a questão social.
Actividade Sindical
Eu fui dirigente do Sindicato dos Químicos, ainda antes do 25 de Abril, por incrível
que pareça. Numa altura em que houve eleições, eu e um rapaz amigo da Petrogal
fazíamos parte da lista da oposição e o sindicato pretendia arejar um pouco a direcção e
nós os dois fomos convidados, mas foi uma situação muito difícil de gerir. Éramos dois
contra seis, íamos fazendo umas sugestões, com muito cuidado, eles iam aceitando, mas
era muito difícil, porque nem sequer se pensava na revolução que vinha aí.
Íamos fazendo umas visitas às empresas, o que não era muito bem aceite pelos
empresários. Havia casos de trabalhadores sem máscaras, sem luvas, enfim com
produtos altamente inflamáveis. Nalguns casos conseguia-se alterar alguma coisa,
noutros nem nos deixavam entrar, como aconteceu na Sacor. Depois havia aquele medo,
por parte dos trabalhadores, as empresas faziam ameaças, havia muito receio.
Antes do 25 de Abril, eu encabecei uma greve na Lacose, porque havia uma
grande discriminação entre os trabalhadores. Por exemplo, nós tínhamos uma sanita à
caçador, sem papel higiénico, enquanto que, ali ao lado, os empregados de escritório
tinham um quarto de banho completo, com papel, toalha e sabonete. Fizemos o caderno
de encargos, entregámos ao gerente, ao engenheiro Braga, que nem resposta nos deu.
Penso que ele nunca acreditou que avançaríamos. Só que, ao fazer 15 dias, estávamos
parados.
Depois da primeira greve, então começámos a ter alguns direitos. A empresa foi
obrigada a dar leite para desintoxicar. Também tínhamos um "x" tempo, que agora não
me lembro, para o lanche da manhã e da tarde. Passámos a ter papel higiénico no quarto
de banho e uma sanita decente. Nos anos 60, nós não tínhamos nada, não tínhamos
direitos nenhuns. Não tínhamos direito a férias, nem subsídios de férias, nem de Natal.
Só os conseguimos depois do 25 de Abril, depois de muitas lutas. Ainda recordo com
saudade o primeiro 1º de Maio, os trabalhadores todos juntos. Hoje, temos a UGT na
Rotunda da Boavista e a CGTP na Praça. Antes do 25 de Abril, o Sindicato dos
Químicos, os Bancários do Norte e os Metalúrgicos eram uma força. Estiveram juntos em
muitas greves, bem como os estudantes.
Houve depois uma greve, já depois do 25 de Abril, que já tinha alguma carga
política, aí, decidi que não alinhava. Era uma questão de diuturnidades, e nós já tínhamos
conseguido os aumentos. Tinha ficado determinado que num mês seria paga uma certa
quantia, no outro outra e assim sucessivamente até refazer o débito, no seu total. Nessa
altura, ainda estávamos com um contrato colectivo feito por sua excelência o Dr.
Marcelo Caetano.
Com o 25 de Abril, eu descobri que a minha ficha do sindicato estava assinalada a
vermelho. Havia um tal Pereira, que era funcionário do sindicato, mas era informador e,
portanto, a perseguição foi através do sindicato. Porque, no plano político, era pouco
aquilo em que eu me envolvia.
Entretanto, saí do sindicato em 1975, quando a AOC pretende lá entrar. Decidi
entregar-me à área social, que sempre foi a minha paixão.
Actividade Associativa
Comecei a envolver-me no associativismo no Serpa Pinto, que era o viveiro dos
jogadores, nos anos 60, mais ou menos. Era o Pólo Norte, o Estrela de Serpa Pinto e o
Grupo Desportivo Lacose. Comecei uma noite, no teatro espectáculo, com o Laboreira,
que é sogro aqui do nosso amigo Mota, Miranda Mota, o Madureira, que era contínuo no
Maria Lamas e com o dono do "Mal Cozinhado", Lopes de Almeida, naquela altura. E então
criámos lá essa associação, em baixo havia o Figueirense, e comecei a programar
espectáculos ali na zona, com o Neca Rafael, a Aurora Pinto, a Assunção, ali, na Rua da
Bouça.
Fui director do Pólo Norte, fui dinamizador e director do Grupo Cénico e Desportivo
da Lacose e fiz muitos espectáculos para a terceira idade, no salão da paróquia da Igreja
do Carvalhido, que me marcaram muito, pelo menos um ano em que uma velhinha fazia
cem anos, marcou-me mesmo muito. Sobre o Calvário do Carvalhido, nem vou contar a
história, que é comprida, mas o Monte da Virgem tem o filme. A Fátima Torres foi fazer
essa reportagem. E ela fez a reportagem mais ao bolo, que eu pedi para a instituição e
não pedi mais nada, porque aquilo deixou-me sem fala, o bolo, eu pensava que tinha que
pagar, mas aquilo foi oferecido.
Sempre gostei de dedicar a quadra de Natal aos orfanatos, aos asilos, hospitais,
cadeias, fiz duas, Santa Cruz do Bispo e Paços de Ferreira. Paços de Ferreira marcou-
me profundamente.
Eu ia buscar os artistas nortenhos, graciosamente, guitarrista ou viola, umas
variedades, e mesmo aqui, em Ramalde, fiz grandes espectáculos, com entrada livre.
Era tudo da minha lavra. Não gosto de sentir o peso duma instituição. Às vezes ia
às poucas economias que tinha, mas ficava de bem comigo. Uma vez pedi o apoio à
Junta, foi-me negado categoricamente. A Junta, na altura, era presidida pelo António
Santos Reis. Eu sei que naquela altura, enfim, as Juntas também estavam com certas
dificuldades, mas que diabo… E a Amália veio ao Porto assim.
Foi exactamente quando eu pedi apoio a uma instituição, à Junta, para um
espectáculo, aqui bem perto na freguesia, para os velhinhos do Pinheiro Manso que
estavam a fazer uma grande obra de acção social, e esse apoio me foi negado, bom, a
partir daí, vi que não tinha hipótese. Ali no asilo havia um casal de velhinhos, que pediam
constantemente: "ó senhor Andrade, traga-nos a Amália, nem que seja só para por a
mão". Bom, aquilo era praticamente uma tarefa impossível. Mas um dia o meu cunhado
teve um acidente de trabalho e foi hospitalizado no São João, na altura em que o Max tinha
um espectáculo aqui no Norte e adoeceu subitamente, tendo sido também internado no
mesmo hospital. Um domingo, a família reuniu-se, fomos ver o meu cunhado e encontrei,
à saída do hospital, a Amália Rodrigues, que vinha de visitar o Max. Lembrei-me logo do
casal de velhinhos do asilo, e decidi abordá-la. Expliquei-lhe a situação e ela ficou
bastante comovida, mas não me deu nenhuma resposta. Dei-lhe um cartão, que eu
pensei iria parar ao caixote do lixo, uma vez que era uma artista no auge da sua carreira,
com contratos para todo o mundo. Qual não é o meu espanto, quando, um ano depois,
recebo um telefonema, num Sábado, a marcar o espectáculo para o dia seguinte. Então,
fui à pressa buscar um rancho folclórico infantil a Leça, fui buscar um humorista, o
Edmundo Ribeiro, já falecido, o Valdemar Vigário e a Aurora Pinto e lá compus o
espectáculo. Entretanto eu tinha um amigo, o Rui de Melo, na televisão, e ele deu a
notícia no telejornal, o que resultou numa afluência enorme de gente ao Asilo dos
Velhinhos. Foi um espectáculo inesquecível e dois anos depois, voltou.
Num espectáculo na cadeia de Paços de Ferreira, houve também um pormenor
interessante. O espectáculo foi com o Domingos Parque e com a esposa, a Florência,
estava também o Artur Rebelo, que cantava muito bem, e, entre vários fados, ele cantava
um, a "Liberdade" que provocou alguma confusão. Estava o director da cadeia e a família
na primeira fila, os presos praticamente todos e uma multidão de convidados. A certa
altura, o director fica com um ar sério e grave e proíbe-nos de continuar a cantar aquele
fado, porque incitava os presos. Bem, eu fiquei embaraçado, mas argumentei que o que
ele cantava até tinha sido aprovado pela censura, ele era o primeiro artista a cantar, se o
espectáculo fosse interrompido teria de terminar tudo ali. Felizmente, houve a intervenção
da família do director a nosso favor e o espectáculo lá continuou. No final, quando
estávamos a carregar a aparelhagem no carro, já era lusco-fusco, os presos estavam às
janelas a acenar com lenços e velas acesas, o que comoveu de tal maneira a Florência
Rodrigues, que, com o rosto lavado em lágrimas, me disse apenas: "Andrade cadeias
acabou".
A Santa Cruz do Bispo fui umas duas ou três vezes e correu tudo bem. Até era
muito interessante, porque havia um grande convívio com os presos, na hora do lanche,
que nos era oferecido. A cadeia é muito mais pequena, se calhar é outra situação.
Só mais tarde é que comecei a envolver-me mais em Ramalde, mas ai já venho com a
escola do Serpa Pinto. Estou há 35 anos aqui em Ramalde. Na Cooperativa de Ramalde, antes do 25 de Abril, havia uns bailaricos famosos. Eu
andava por aqui nos bailaricos e um dia apareceu-me aí um amigo que me convidou para
fazer teatro.
Faziam-se aqui grandes peças e a polícia, antes do 25 de Abril, actuava em força.
Nós tínhamos aqui " O Poder do Ouro", que era uma peça com uma carga política
tremenda e tínhamos a visita constante da PIDE. Como tínhamos os cenários da peça
"Fátima Terra de Fé" tínhamo-los sempre prontinhos a entrar em cena, se lá em baixo o
colega dava sinal de campainha, informando que a PIDE estava a entrar. Então,
púnhamos os cenários, dizíamos duas ou três deixas da peça, eles espreitavam,
pensavam que estávamos a ensaiar a peça sobre Fátima e iam-se embora. Quando eles
iam lá em baixo, já estávamos outra vez com " O Poder do Ouro" em cena. Mas também
ficaram aqui alguns colegas, porque não podiam sair. Temos um cofre lá em baixo, um
cofre muito grande, numa cave, e chegaram a ficar lá noites inteiras escondidos. Numa
dessas noites, acontece que tínhamos cá o homenzinho que tratava da mula, a mula da
cooperativa, que fazia o transporte dos géneros. Dizem que o Max, num dos
espectáculos, isto foi-me contado por grandes nomes da nossa música, que vi aqui a
actuar, e o Max foi um deles, bem como o Adriano Correia de Oliveira, o Fanhais, a
Amélia Canoças já duas vezes, e outro, mas como estava a referir, dizem que o Max se
deve ter inspirado na mula da cooperativa para a sua canção. Quando o Zé atravessava
ali, era tudo campos, dantes não havia nada como hoje. E então a mula, que ia muito
carregada, caiu e o Zé dava-lhe pontapés para ela se levantar. O Max, que tinha ido aqui
a um tasquito, que havia em frente, e que era tasco, mercearia, farmácia e tudo ao
mesmo tempo, ficou ali a contemplar a cena, e dizem que se deve ter inspirado para fazer
a sua canção, não sei. Mas ainda não perdi a esperança de saber a verdade, porque o
filho vem frequentemente ao Ateneu Comercial expor um espólio do pai, os discos
antigos, todas aquelas músicas feitas por ele e eu quero ver se ele tem dados que
confirmem isso. Entretanto, por essa altura, logo a seguir, entro para a direcção da cooperativa,
antes do 25 de Abril, mas, quando cheguei aqui, isto estava tecnicamente falido. Havia o
Francisco Santos, que era um homem hábil, um tecelão. Aliás todos os homens
fundadores eram tecelões e agricultores. Eram quase todos tecelões da Fábrica dos
Ingleses.
Na altura, a cooperativa também era de produção, produzia cigarros, máquinas e
tudo. Nessa época, era o Continente cá do sítio. E ainda hoje, apesar de muitas
dificuldades, que as há, ainda é a que se segura das que estão de pé.
A ruína desta casa é o supermercado, as contas falam por si. Portanto, vive-se dos
sócios e esses sócios têm o capital, mas têm o capital a render-lhe aqui o que não rende
num banco, nem podemos fazer isso, porque é ilegal. O sócio entra e paga dez contos.
Se quiser fazer mais, mais recebe. 7% hoje ninguém tem num banco. A cooperativa, neste momento, deve ter cerca de setenta sócios, mas já teve muito
mais, porque, à medida que as pessoas vão morrendo, não há continuação. Ao jovem de
hoje, isto não diz nada. Antigamente, havia sócios que, logo por altura do nascimento do
filho, o inscreviam como sócio da casa. Hoje, o jovem está motivado para outros
caminhos, que até nem são os melhores, mas enfim, o facto é que, hoje em dia, isto já diz
muito pouco à malta nova. E devo dizer que, quando faltarem estes carolas, estas
instituições morrem. Esta casa também está bastante degradada e as pessoas comem
com os olhos. Não convida, mas pronto. A Restauradora de Ramalde é uma instituição de saúde mutualista. Há subsídios
para os funerais, consultas. Está ligada àquela mútua do Bonjardim, onde também sou
delegado. Todas elas estão ligadas. Actualmente, no Bonjardim, temos uma farmácia
privativa nossa e temos cinco cadeiras de dentes, temos especialistas dos olhos, dos
ossos, de tudo ali, mas com instalações dignas. Mas também nesse campo, não tem
havido o apoio necessário das entidades responsáveis. Portanto, vive-se da quota dos
sócios. E os velhos, com a sua teimosia e o seu querer, continuam com a obra de pé.
A Restauradora nasceu aqui na Rua São Salvador, há 125 anos. Antes de ser
Restauradora era São Salvador e deu o nome à rua e depois passa a Restauradora.
Portanto, como São Salvador teria mais uns anos, agora não posso dizer quantos mais.
Mas a Restauradora tem uma história muito triste. Nos tínhamos um imóvel aqui a meio
da rua, onde está hoje o posto da segurança social e, porque, na altura, tínhamos o posto
a cair de podre, aqui no Largo de Pereiró, falava-se em tratar de ver instalações para um
novo centro de saúde, Então, fizemos um protocolo com a Junta de Freguesia no mandato
do Torres, José Oliveira Torres, e com o advogado Agostinho Rafael e o assistente social
Roque, que hoje é o responsável dos CATS cá no Norte. Foi o Francisco Santos que
tratou do protocolo. O protocolo foi de tal ordem tratado que ficou de se dar uma sala à
Restauradora e, até hoje, não se viu nada; ficou de se dar certos benefícios aos sócios da
Restauradora e aconteceu o mesmo, portanto, eu hoje diria que não cederia aquele
imóvel por nenhum preço. Arranjaríamos quem construísse e nós ficávamos com o rés do
chão, mas enfim pronto, nem tudo corre bem.
Hoje, a Restauradora tem alguns trastes aqui, por favor da cooperativa, porque
também já fez o contrato, já teve a cooperativa em obras, porque a cooperativa não
nasceu aqui. Nasceu numa casinha velha, que está à entrada da Rua da Preciosa, foi ali
que nasceu. Depois, entretanto, instala-se lá um centro de saúde, ainda hoje estamos à
espera de uma sala para instalarmos a Restauradora, que tem um património riquíssimo
e que se está a degradar ai numa cabine de barro vermelho, sem ar, sem nada. Nós
temos prensas de encadernação, temos um relógio de sala, um cofre que é uma jóia de
arte, mas isto aconteceu e pronto. Este presidente, honra lhe seja feita, assegurou-me
que teremos um espaço na Junta. No que diz respeito ao património, não nos podemos esquecer dos grandes
homens, os autores das peças, os artistas. O Lívio Real era um homem analfabeto, mas
com o seu fatinho domingueiro apresentava um espectáculo aqui ou em qualquer outro
lado. Ele tocava muito bem guitarra, cantava muito bem o fado e escrever, escrever não
escreveu, porque ele não sabia nem ler nem escrever, mas eu gostava de o ouvir,
cheguei a ouvi-lo algumas vezes. Virava-se para o Pinheiro, que foi aqui encenador de
teatro, e ditava-lhe as peças. Eram peças que só faltavam ser escritas por ele, mas são
da autoria dele, mesmo o argumento musical também. Há aí pautas. Isto foi o que eu
consegui ir buscar aí por detrás dos móveis. Ele, juntamente com o Pinheiro, o autor das
pinturas destas paredes, tiveram uma actividade muito importante nesta casa. Temos
aqui muita pintura normal, mas também pintura a óleo em tela de madeira. Já tentámos
iniciar a recuperação, mas era muito caro, mesmo só os materiais, e por isso parámos,
porque isto vai de fora a fora e mais o teatro. Isto esteve coberto anos e anos, ninguém
sabe quem é ou quem foi o autor destas pinturas todas, estava tudo coberto com
serapilheira pintada de castanho por cima.
Quando estivemos a restaurar, viu-se que o palco ia até além daquele frisosinho,
deixava de ser castanho ou dourado, para passar a branco. Então foi preciso arrepiar a
serapilheira e começaram a aparecer as pinturas. Entretanto, também descobrimos um
cofre, que eu conheci na altura e depois desapareceu, era alto, lindo, uma maravilha de
um móvel. Eu pensava que lá dentro estaria um selo branco trabalhado, que tínhamos aí.
No armazém, descobrimos uma caixa com muitos livros por cima, livros valiosos, e as
primeiras actas da Cooperativa de Ramalde. Estava tudo, ali, cheio de pó e humidade. E
então deparei com o cofre, mas estava violado. Lá dentro não tinha nada, foi violado
pelas traseiras, portanto o segredo estava intacto. De facto, no segredo ainda está lá a
etiqueta do fabricante, e é através daquilo que se vai buscar o segredo. Eu já disse aquilo
é um cofre para meter ali na parede, voltado com a frontaria, mas para se usar. Depois
das obras concluídas, vamos ver onde é que se vai por aquilo. Agora os livros e as actas
têm uma letra maravilhosa, uma coisa fantástica. Também temos aí peças censuradas,
revistas musicadas, feitas aqui nesta casa por grandes nomes, que passaram por aqui.
Nós estamos em vias de criar um arquivo histórico em Ramalde, antes que se
perca o pouco que já resta. Neste momento, temos tido iniciativas de carácter cultural, temos um grupo aqui
sediado de cantares e cavaquinhos de Ramalde, temos um conjunto de baile, que é o
TOP ZAP, que está cá assiduamente, fez cá um baile agora no passado dia nove e que
estão sempre prontos para aquilo que é preciso, temos a banda, que é centenária,
Depois, também estamos a incrementar o teatro, que tem estado parado. Por outro lado,
o salão da cooperativa está à disposição da comunidade, porque as associações que não
têm sede, têm aqui a sua casa, de portas abertas
O Asas de Ramalde é um infantário na zona mais carenciada da freguesia e onde
temos, neste momento, oitenta e tal miúdos. Temos ainda os idosos, damos assistência
domiciliária a 40. Temos uma carrinha com uma equipa com assistentes sociais e não só,
que tratam única e simplesmente desse problema. Também temos o ATL. Para além da
casa que temos aqui, na Torre do Viso, temos uma em Ramalde do meio e vamos abrir
outra ali, neste bairro novo também no Viso, em frente à Quinta do Rio. Temos ainda a
Casa da Juventude, que é outro pólo importante, onde temos, neste momento, trinta e
tantos jovens a frequentar cursos de fotografia e computador e onde se podem ocupar
nos tempos livres. Em relação ao Asas de Ramalde, consegue-se mobilizar um certo número de jovens para
actividades do seu interesse, porque lhes prestam um serviço e hoje em dia as pessoas
procuram os seus interesses, mais do que os interesses dos outros, mas, nesses jovens,
não haverá uns quantos, que se contem pelos dedos, que consigam embrenhar-se nesta
dinâmica, não sei porquê, mas por vezes penso que há gente com muito boa vontade
para fazer qualquer coisa, agora o que é que impede essa gente de fazer essa qualquer
coisa, é uma coisa complicada.
Construímos a sede de raiz. É uma associação que me está na alma. Eu andei
com a camioneta da Câmara nas fábricas, em Aveiro a pedir tijolo. Tivemos algum apoio
da Câmara e da Junta, mas foi muito pouco. E isto é tudo gratuito, excepto o infantário,
que tem um subsídio da segurança social. Neste caso, alguns utentes pagam uma taxa
mínima, para os outros é grátis. Mas, neste domínio, há um problema, que, para mim, é
uma frustração muito grande. Os infantários camarários e das Juntas de Freguesia têm
um tratamento, os infantários que não são nem de Juntas nem de Câmaras têm outro. No
primeiro caso, quem paga às educadoras é o ministério. Nos outros casos, é a própria
instituição que tem de pagar às educadoras, ao pessoal auxiliar, às cozinheiras e ao
pessoal de apoio aos idosos.
Temos que recordar aqui o Eng.Brás, que é o presidente actual, que é o
proprietário da Quinta do Rio e que é uma pessoa muito generosa, a quem a associação
deve muito. Por exemplo, ficámos sem carrinha para o apoio ao domicilio e ele foi ao
Salvador Caetano e trouxe uma. O infantário há-de pagar-lhe a carrinha a prestações.
Mas nós temos muitas dificuldades, em termos económicos, para dar resposta a esta
situação. Temos como presidente das IPSS o nosso Padre Maia, mas o Padre Maia tem
um discurso aqui hoje e tem outro amanhã com o senhor ministro. E com essas
diferenças de tratamento, o que acontece é o seguinte: aquelas boas educadoras que
temos lá, e fizemos ali boas educadoras, quando lhes abanam com um emprego para um
infantário do estado, lá vão elas.
Eu faço parte da mesa da assembleia, mas eu fiz um enfarte e queria largar tudo,
menos o Asas de Ramalde, mas, com a insistência dos amigos, fui ficando,
Reunimos com a Federação das Colectividades. Este ano, no encontro das
colectividades, fui convidado de honra, é sempre um estímulo, mas eu não queria e acho
que havia pessoas capazes de merecerem mais o galardão que eu, mas foi um gesto
muito gratificante, um gesto do grande homem da cidade do Porto, que é o Helder
Pacheco.
Estas coisas sensibilizam-me muito. São assim os retalhos da vida de um homem
com 66 anos e que está a viver, se calhar, os últimos anos da sua vida, com muita
intensidade e muito feliz, por ter o sentimento do dever cumprido, para com os outros,
novos e velhos. Se desse um passo atrás, voltaria a fazer tudo isto, porque de nada me
envergonho.
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