Palmira de Sousa
Dados pessoais, infância, escolaridade
Nasci na Freguesia da Sé, no Porto, em 1912. O meu pai não sei, mas a minha avó
era de Vila Real. A minha mãe era do Porto. Ela era carquejeira e o meu pai era
sapateiro. Viveram no Porto e tiveram sete filhos, tantos como eu, três raparigas e
quatro rapazes. Vivos, só estamos agora eu e um irmão meu. Um morreu dos
pulmões, era chegado a mim, o mais velho. Em pequenos, morreram três raparigas,
tinham 5 anos e seis, uma morreu das bichas, que, antigamente, as bichas matavam
a gente. Eu também tive um filho meu que ainda no caixão tiveram de lhe tirar as
bichas.
O meu pai sabia ler e escrever e falava muito bem. Chamavam-lhe o Dr.Vianca
porque, por exemplo, se uma pessoa fosse responder, ele ia ser testemunha. A
gente podia estar a passar fome, que ele deixava o trabalho e lá ia. Estava sempre
preso, mas não era político. Com a pinga de vinho era mau, batia-nos e à minha
mãe também. A gente dormia, com licença, nas cagadeiras que eram de pau, a
minha mãe, muito encostadinha à gente, ali debaixo dumas varandas... morava lá a
minha avó, nem a minha avó nos podia recolher, que ia para lá ele, partia,
escavacava tudo. Isto que não sirva de pena, que se deixe lá estar. Mas também a
gente passou... A minha mãe teve 10 filhos e nunca foi ter nenhum filho ao hospital.
Ele trazia a minha mãe de rastos, com os filhos. Era na cozinha que se escondia
com a gente.
Mas era um bom sapateiro. Antigamente era o melhor sapateiro dali, dali de Santo
António. Fazia sapatos de tacão.
A minha mãe não sabia ler nem escrever, mas sabia coser pés, era curandeira. Ela
sabia tudo. Vinha muita gente buscá-la, de longe, de automóvel, e ela lá ia. Também
fazia partos. Uma vez, fez a uma que vinha com os pés à frente, eu nem sei como
ela, coitada, se safou daquilo, se não, ia presa, naquela altura. Era ela e a Inocência.
Fazia muitos partos, em casa, claro. Às vezes, chamavam-na de madrugada, mas
abortos não fazia. Depois de acabar a carqueja, foi assim que ganhou a vida.
Também vendia fruta, fruta tocada.
Eu também não sei ler nem escrever. Mas eu faço bem contas, vou buscar as
compras e ninguém me come nas contas. Que compras, agora, não faço muitas, é
mais a minha nora. Naquele tempo, não fui à escola. Dantes era outra vida que não
é agora, ficava a olhar pelos meus irmãos, que eu era a mais velha. E as nossas
brincadeiras eram na rua, a jogar à macaca, fazíamos uns riscos com um giz, à
corda queimada, às rodinhas, dávamos a mão uns aos outros, a gente ia com um
lenço, à noite, a cantar: "ai sim Carolina, ó ai, ó ai, ai sim Carolina ó ai meu bem"....
era a cantiga que cantávamos, ou então "já passei a roupa a ferro, já passei o meu
vestido, agora vou-me casar e o Manel é meu marido. Todos me querem, eu quero
alguém, quero o meu amor, não quero mais ninguém". E outras cantigas que eu já
não me lembro. Não tinha brinquedos. A minha mãe é que fazia umas bonecas de
trapo, umas monas, e com o lápis fazia uns olhos. Agora é outra vida, têm tudo.
Dantes, davam-nos um bocado de pão com um bocado de açúcar e metiam num
farrapo, era uma chucha de farrapo. As crianças adormeciam com aquilo. E nem
havia leite, era água fervida com sopas de sêmea negra. E andamos aqui. Eu nasci
com sete meses, era um gatinho esfolado. O meu pai, Deus lhe perdoe, fui a
primeira e diz que lhe saiu nessa altura a sorte grande, que nem havia roupa que me
servisse. Tinham de fazer roupa para mim.
Entretanto, fui enganada aos 27 anos e casei quando a minha filha estava para
nascer. Já vivia com o meu homem e já ia com uma filha na barriga. Tivemos que ir
à doutrina, no Patronato, porque eu casei pela Igreja e, quando era pequena nunca
fui à catequese, nem fiz comunhão, nem fui baptizada e o meu marido também não.
Às minhas filhas já dei a comunhão e fizeram a 4ª classe. Pelo casamento não
tivemos que pagar nada, foi o sindicato do meu marido. Era Inverno, nem tinha que
comer. Duas velhotas deram-me 25$00 e fui à Rua Escura comprar duas postas de
bacalhau. Ainda fiquei a viver na Ilha Vitorina uns tempos, aí as pessoas eram quase
todas da família do meu pai. Quando tive a minha primeira filha, arranjei uma casa,
na Corticeira, na Ilha 50. Era muito pequenina, tinha um quartinho na sala de jantar,
com uma cortina, fiz uma separação para ter um quarto para mim e para a minha
filha. Casa de banho não tinha. Em 1972, a casa foi restaurada, de duas, fizeram
uma, foi para o guarda da GNR. Por baixo, parece-me que está a Associação de
Moradores das Fontaínhas. Nessa altura, fui obrigada a sair de lá, fui para o Bairro
do Lagarteiro. Quando a vida começou a ser melhor um bocadinho, fiz algumas
transformações. Não tinha água quente, nem banheira, na cozinha tinha banca, mas
não tinha aquelas comodidades. Mas, na altura, senti muito a falta da Corticeira.
Muitas vizinhas de lá vieram para aqui, e até uma amiga minha, mas, mesmo assim,
todas as semanas tinha que lá ir. Era uma festa, quando ia à Corticeira. Também
dei-me sempre bem com toda a gente. Mas, naquele tempo, era uma alegria. A
gente ia para Monchique, para os bailes, ou para Gaia, quando havia aquelas festas,
as quermesses. E no São João, era uma alegria! Os ranchos vinham de todo o lado e
a gente ia atrás. Íamos pela Batalha, com os bombos, com as rusgas das comissões
de festas. Antes de ir trabalhar, de manhã cedo, iam dar aquela alvorada e depois
de tarde, quando vinham de trabalhar e à noite. Os homens iam com um lenço
vermelho ao pescoço e as mulheres com uma saia e um lenço também ao pescoço
e lá íamos à frente dos bombos a dançar; íamos para o Anjo, para o Bolhão e depois
o fogo era na Corticeira.
Os meus filhos ficavam com a minha mãe, ela é que tomava conta deles, também
era viúva. Mas uma vez, faz agora anos pelo São João, o meu homem era dos
bombos e eles andavam a dar a alvorada, eu tinha a minha filha, e o meu homem
fechou-me em casa para eu não ir para a festa. Chorei muito.
Tive sete filhos. O meu homem nunca me deixou tomar nada.
Uma ocasião, a minha tia Ana, Deus lhe perdoe, queria dar-me um chá para eu
abortar o meu filho, mas o meu homem disse-me que, se eu o tomasse, me dava
uma tareia. E então eu não tomei.
Os meus filhos tive-os em casa. Dum, fui ver o meu homem ao hospital, deu-me as
dores, mas ele, Deus lhe perdoe: "vai, vai, vai embora". Vim, tive-o em casa, a minha
mãe foi que me assistiu e a que é mais velha agora, também a tive em casa, mas na
casa duma tia minha e madrinha, na Calçada da Corticeira, que já não tive tempo de
ir para o hospital.
Quando nasciam, alguma vizinha fazia uns chambrinhos com um bocado de pano,
Dantes era chambres, umas camisas abertas e touquinhas. Depois, para o
baptizado, que eu baptizei os meus filhos todos, as madrinhas davam um vestidinho
de chita comprido, mas não havia festa como há agora. Eu não tinha para comer,
quanto mais para fazer festas. A gente o que queria era que nos baptizassem os
filhos. Agora há tudo, há anos, há bolos. A gente não tinha nada.
Na carqueja andava com os filhos sempre atrás de mim, nos aventais, pela
Corticeira acima, que a gente não ganhava para as amas. Às vezes vinham
pessoas, homens ou mulheres e tiravam-me os filhos do avental e lá os levavam, às
vezes nos carros de bois. Uma vez, na ponte, um ia trás de mim, tive que lhe dar
uma tareia para ele se ir embora, mas ele foi sempre atrás, estive para ir presa. É
que aí na ponte havia as barreiras, estavam lá os guardas fiscais e a gente tinha
que pagar bilhete. Eram dois tostões, mas era o patrão que pagava. Foi uma vida
negra. Ainda pequeninos, morreram-me três com as bichas, uns com quatro anos,
outro com cinco. O último ficou lá nas Goelas de Pau, agora chama-se Hospital Joaquim
Urbano, tiraram-lhe líquido das costas e já não valeu, chegámos a casa morreu logo.
O meu marido também morreu muito cedo, morreu com 30 anos. Deu-lhe um
ataque, foi na cabeça. Foi pelo Natal. Íamos buscar uma madeira e o ataque deu-lhe
no Jardim de São Lázaro. Fiquei com seis filhos, um com três meses, depois
morreram-me dois. Não quis voltar a casar. Levei muita pancada e passei muita
fome. E depois ele só andava com amigas. As minhas vizinhas davam-me achegas,
mas eu nunca me fiei em ninguém. Um dia, vi com os meus olhos. Andava com uma
cunhada minha e também comadre. A ela, dei-lhe uma tareia. Nunca pude contar
com ele para nada.
Actividade Profissional
Comecei na carqueja tinha 10 anos. Comecei por ajudar a minha mãe a levar os
molhinhos, depois fui crescendo. Ia apanhar a carqueja na beira do rio. Vinham os
barcos "rabelos" de Melres e ali, ao fundo da Corticeira, viravam a carqueja e a gente
levava-a para as padarias, 200 molhos, 300 molhos, era aos pares que a gente
levava... a gente tinha uma corda, molhava-se os molhos... parece que ainda estou a
ver... os molhos que a gente fazia... pagavam a 25 tostões... para tão longe... Íamos
a pé, a subir a Calçada da Corticeira, para a Foz, a Boavista, o Carvalhido, para o
Conde Ferreira, a carregar aquilo tudo. A gente tinha dias que fazia 3 viagens,
ganhava 7 e quinhentos e às vezes éramos autuadas, lá ia o dinheiro… Tinha um
patrão, mas não descontava, nem tive Caixa nem tive nada.
Pagavam mal e a gente à chuva, a tirar carqueja do rio para a marginal, quando
eram as cheias. Ficávamos todas molhadas, entrava-nos a água pela cabeça... a
gente secava a roupa no corpo. A minha mãe, Deus lhe perdoe, tinha um fogareiro e
duas cadeiras para secar a roupa, ali por baixo... passámos muito. Andavam 11
mulheres na carqueja. Não tinha horário de trabalho, trabalhava até à noite e mesmo de noite. Quando as
padarias não tinham lenha para os fornos, telefonavam e a gente lá ia, às tantas da
noite. Trabalhei na carqueja até aquilo acabar, quando o Governador Civil não
deixou a gente andar com a carqueja às costas. Não deixava andar a gente na rua,
carregada, tínhamos que andar fugidas. A gente ia ganhar 25 tostões por cada
molho, não se ganhava para as multas, pagava-se 25 tostões das multas... Então a
gente ia para a porta do Governador Civil, íamos para lá fazer barulho, que a gente
tinha os filhos e tinha que se ganhar, mas não conseguimos nada. Depois, a
carqueja ia em camiões e as carquejeiras iam em cima, para descarregar à porta
das padarias. Às vezes, vinha a música ao Quartel 18, o Quartel General, no Campo
da República, vinha ali da Trindade e a gente ia à frente a dançar com eles. Mas
depois proibiram, nem podíamos passar na Rua de Santo António. Também era
proibido andar descalço. E a gente andava sempre descalça, as sapatilhas todas
rotas, os dedos a sair fora. Dantes usava-se sapatilhas, eram uns sapatos de pano.
A gente, muitas vezes, quando via o polícia ao longe, botava as sapatilhas ao chão e
calçávamo-las. Às vezes levávamos uns chinelos velhos debaixo do braço.
Depois, andei a fazer limpezas, andava um dia a esfregar ali, outro dia a esfregar
acolá, andávamos assim. Também fui padeira, ali no Regado, na Rua das
Fontaínhas, tinha aí uns trinta anos. Trabalhava sete dias na semana, mas só de
manhã. Nunca tínhamos folga. Nem tinha Caixa. Naquela altura, o patrão dava-nos
5$00 por levar uma canastra de pão para a padaria do Bolhão, um depósito que lá
estava, também íamos para a Fábrica das Cigarreiras, era uma grande fábrica, no
Campo 24 de Agosto, e para um colégio de abandonadas, que havia em Santos
Pousada, levávamos uma canastra com umas sêmeas grandes... também
ganhávamos 5$00. O meu marido também foi carquejeiro, mas depois era carrejão na Ribeira,
carregava e descarregava os barcos do bacalhau. Mas quando casámos nem tinha
trabalho na Ribeira.
Os meus filhos começaram a trabalhar cedo. A mais velha foi para a fábrica da
louça, na Calçada da Corticeira, a outra para a fábrica dos envelopes, em Gaia. Da guerra, do que me lembro é de que a gente andava fugida. Eu moro em frente à
Serra, ao Quartel. Houve uma sublevação e os da Serra do Pilar atiravam para aqui
para a zona das Fontaínhas e os das Fontaínhas atiravam para lá e então só
saíamos de casa quando estava nevoeiro, para não nos verem, porque, se
houvesse movimento, eles atiravam, que a minha casa estava cheia de balas.
Morreu muita gente nessa guerra. Eu tinha aí uns vinte anos.
Então íamos de manhã ao fontanário, cedo, se houvesse nevoeiro, para ir buscar
um caneco de água. O que nós passámos!. A gente até dormia num portal fora da
ilha. Ainda existe essa ilha, lá na Corticeira. É a Ilha Maria Vitorina. Uma vez, a
minha mãe tinha lá uns pintainhos, fomos recolhê-los, mas eles tinham luz e nós
tivemos de os botar para o chão, viemos de rastos. E passei muita fome e miséria,
andávamos carregadas, mas só comíamos um bocado de pão com chouriça, uns
queijinhos destes de cabra, custavam dez réis. Ainda sou do tempo dos meios
tostões...
Também me lembro do racionamento. Quando íamos ao pão, íamos em grupo,
íamos ao armazém do pão à Arrábida, também íamos ao Bolhão, para a bicha do
sabão, a bicha do azeite em Gaia, onde houvesse... a gente sabia. Mas quantas
vezes a gente estava ali na bicha e chegávamos à noite e não trazíamos nada .
Passámos muita fome, não havia nada.
Na Guerra Colonial tive um filho, esteve lá dois anos, foi em 1972 que foi para a
Guiné, era páraquedista. Quando me lembrava que ele ia, chorava, os meus dias
acabaram com medo que ele morresse por lá.
Agora, depois do 25 de Abril, vive-se melhor um bocado. Tenho que comer, como
melhor e também se vê televisão. Dantes, não havia televisão, usava-se a grafenola,
mas como também não tinha... Dantes, passámos uma vida estúpida. Agora, sempre
dou uns passeios, até à Senhora da Saúde, e com o meu filho já dei uns passeinhos
bons, já fui ver coisas que nunca tinha visto. Fui à Expo, fui ao Jardim Zoológico, fui
ver os meus irmãos.
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