Maria Eunícia Rodrigues Machado Salgadinho
Dados pessoais, infância, escolaridade
O meu nome é Maria Eunícia Rodrigues Machado Salgadinho. Nasci em
Matosinhos em 1928. O meu pai era da Foz do Douro e a minha mãe de
Murça, de Trás-os-Montes, mas aos 10 anos foi para Lisboa. Vinha a férias a
Matosinhos, onde conheceu o meu pai.
O meu pai tinha só a 4ª classe. A minha mãe teve aquela educação
antiga do Francês e do piano. O meu pai era comerciante de fazendas. Aos 11
anos de idade fugiu à mãe que era muito mázinha e foi pedir emprego numa
casa de fazendas. Ao patrões, que eram fidalgos minhotos, tomaram conta
dele, como que o adoptaram, educaram-no como se fosse filho, e assim
criaram um burguesinho. Adquiriu certas relações sociais entre essa burguesia,
por isso se achava superior, o que não acontecia com a minha mãe, apesar de
ela ter mais razões para isso. Era uma jóia de pessoa, muito honesto, muito
educado, género "punhos de renda", mas sem preparação intelectual. Só uma
vez na vida o vi ler um livro, por ser escrito por um amigo e ele ter vergonha de
dizer que não o tinha lido. Já a minha mãe era uma pessoa muito interessada
na cultura, mas foi muito condicionada pelo meu pai. Na altura era assim.
Embora fosse uma lutadora e em solteira tivesse trabalhado num ministério,
depois de casada passou a doméstica.
Frequentei o antigo 3º ano liceal, depois cursei uma espécie de
secretariado no Riley Institute, e mais tarde fiz o curso de Inglês do Britânico
(designado pelo dito instituto "Curso de Inglês da Universidade de Cambridge"),
para me poder empregar, ser mais independente. Das 4 irmãs que éramos fui a
única que quis trabalhar e isso foi quase uma revolução em casa, por causa do
meu pai que assim, penso, via fugir a sua completa tutela sobre um filho que,
ainda por cima, era rapariga.
O primeiro emprego que me apareceu seria num escritório, como
correspondente em línguas. Sei que hoje a profissão se designa doutra
maneira, mas não me ocorre qual. No Riley Institute houve um concurso para
ocupar esse cargo, a pedido do dono do escritório, e fui a escolhida (diga-se de
passagem, com uma humana vaidade minha, que venci o concurso contra 4 ou
5 concorrentes... todos rapazes...). Mas o meu pai é que apresentou o meu
curriculum, e o que lá constava era que eu não me pintava, que não andava
com rapazes... Fiquei tão envergonhada que não tive coragem de me
apresentar e disse ao meu pai que tinham telefonado a anular tudo.
A minha irmã mais velha ainda teve a educação que tivera a minha mãe,
com professores que iam a casa dar-lhe as aulas de Francês e de piano. A irmã
a seguir a mim já foi para a Escola Comercial, que frequentou também até ao
3º ano e a mais nova não passou da instrução primária por, em parte, ser
deficiente locomotora, mas realmente porque não quis lutar por condições que
lhe permitissem estudar um pouco mais. O meu pai achava que a uma menina
não era necessária a instrução; para a conseguirmos tínhamos que lutar, o que
não era fácil, convenhamos. A meta na vida das minhas irmãs e a ideia de
independência passava pelo casamento. Eu lutei por muito mais. Do
casamento tinha até medo, porque pensava que todos os homens eram iguais
ao meu pai – o que, naquela época, nem era juízo muito descabido. Ele não
me deixava ler porque havia roupa para passar a ferro ou passajar e tinha que
o ajudar no estabelecimento. À noite não se lia porque se gastava luz. Era
assim a educação. Ler... fazia "macaquinhos no sótão" e esses achava o meu
pai que eu já tinha demais; política... nem pensar, não era para meninas.
Mesmo para ele... "A minha política é o trabalho", dizia muitas vezes.
Tenho muito boas recordações de garota. Não tanto de quando brincava
metida em casa, com bonecas e a "fazer casinhas". "Casinhas" que quando
estavam arrumadas eu desfazia a pontapé ou arrasava com as mãos, por
rebeldia (pelo que os meus pais contavam eu era uma criança muito rebelde).
As melhores recordações de infância vêm-me de quando vivemos seis anos em
Murça, por doença do meu pai, e ele alugou uma quinta onde eu brincava ao ar
livre em jogos mais consentâneos com o meu jeito arrapazado. Na quinta,
estudava em cima de uma figueira com umas copas em feitio de maple; penso
que isso me dava uma certa noção de liberdade. Às vezes o meu pai não
deixava, dizia que eu era maluca.
A nossa casa, o nosso viver, era a atirar para o burguês. Tínhamos
rádio, numa época que poucas pessoas o tinham, e a primeira coisa que a
minha mãe fez quando fomos para a aldeia, foi improvisar um quarto de banho.
Não havia água encanada, mas já era um bom arremedo de quarto de banho e
havia pessoas queriam ir lá vê-lo. Tínhamos razoáveis condições de vida,
quase sempre, mas nunca fomos ricos. O meu pai era o que se chama um bom
balcão, mas não sabia ser bom comerciante, um pouco porque era muito
honesto, não tinha aquela, como é que hei-de dizer... aquela eficácia
necessária para enriquecer com a profissão.
Lembro-me de muita coisa da II Guerra Mundial, por exemplo, do
racionamento. Foi a altura em que o meu pai estava doente. Aí tivemos muitas
dificuldades, mas a minha mãe foi fantástica. Com estratagemas conseguiu
ocultar essas dificuldades à filhas, ainda crianças que éramos. Conversava
muito connosco. O meu pai achava que conversar com uma filha era dar-lhe
confiança. As coisas eram assim nesse tempo e não tenho nenhuma mágoa
contra ele; pelo contrário, porque vim a compreendê-lo. Ele era até muito
cuidadoso connosco, fosse embora esse cuidado exercido de modo um tanto
opressivo. A educação que levara, a sua falta de cultura, não lhe permitiam ver
mais longe. A minha mãe foi educada num ambiente muito burguês. O seu pai
morreu tinha ela 10 anos e então foi para Lisboa viver com um irmão que lhe
deu aquela educação, a mesma que dava às filhas: o Português, o Francês, o
piano, os bordados, sempre com professoras idas a casa. A minha mãe exigiu
empregar-se aos 18 anos, não queria viver à custa do irmão. Ele, nessa altura,
tinha um cargo superior no Ministério do Trabalho (acho que já se nomeava
assim). Chamava-se Alfredo Pinto. Há uma rua com o seu nome na terra onde
nasceu, em homenagem a actos de benemerência e à sua participação na
Implantação da República. Foi Chefe de Gabinete do Presidente Bernardino Machado,
ocupou cargos políticos importantes na 1ª República, foi jornalista,
relacionou-se com gente progressista (para a época, pelo menos) e culta. E
isto é muito interessante, acho que vale a pena citá-lo, porque o meu tio tinha
somente a 4ª classe! Foi agraciado com a comenda da Ordem de Cristo,
durante a 1ª República. Conservador – que outra coisa ser, geralmente, nesses
tempos? - também lhe fazia confusão a irmã ir trabalhar fora de casa, mas ela
sugeriu-lhe: "Se ao menos eu pudesse trabalhar no teu gabinete" e lá
conseguiu ir para o ministério.
No 28 de Maio, o meu tio saíu do Governo. Ele, no tempo do Sidónio Pais,
não foi morto por mero acaso, porque do grupo encarregado de o matar
fazia parte um militar que era da terra do meu tio e lhe devia muitos favores.
Assim, mandou a mulher avisá-lo para ele fugir e o meu tio fugiu, claro. Senão
também teria sido assassinado como o foi Machado Santos, de quem era
grande amigo. Mas antes chegou a estar preso na casamata do Aljube de Lisboa,
por lutar pela Implantação da República.
O meu tio era contra o regime do Salazar. Nunca mais foi funcionário
público, não aceitou cargos oferecidos pelo Salazar. Por isso sentia-se
perseguido. Os amigos dele eram pessoas também contra a situação. Em todo
o caso, conhecia o Cardeal Cerejeira e lembro-me de um almoço em que eu
estava presente, teria 13 anos, e em que o meu tio levou todo o tempo a pegar
com o cardeal. Ouvi-o dizer-lhe, a certa altura e a propósito de qualquer
afirmação do Cerejeira: "Sabe que isso que é mentira, não sabe, senhor
Cardeal?" Nunca me esqueci disto.
Depois de casada, a minha mãe deixou de trabalhar, mas fez luta para
uma certa independência. Era, também, duma grande imaginação e bem se
serviu dela quando o meu pai tuberculizou, quatro filhas pequenas e duas
velhinhas taroucas para sustentar. Isto foi durante a II Guerra Mundial, quando
vivíamos na aldeia. Lembro-me do racionamento, mas, como o meu pai teve a
feliz ideia de alugar a quinta de que já falei, dela colhíamos muita coisa. E a
minha mãe aproveitava tudo, fazia "milagres" com o que ali se produzia,
transformando-os em petiscos.
Mantinha umas certas relações sociais, um pouco constrangida, dadas
as dificuldades com que vivíamos, mas as pessoas não sabiam e continuavam
a ir aos "cházinhos". O chá era colhido na quinta - chá de cidreira ou de tília - e
adoçado com mel, tal como os doces que a minha mãe confeccionava. O
açúcar era substituído por mel porque possuíamos cortiços de abelhas na
quinta e, portanto, os cházinhos ficavam mais económicos. Era a intenção da
minha mãe, claro, mas ela dizia às visitas que o mel era muito mais saudável,
que tinha sido receitado pelo médico, e então pegou a moda na terra. Foi como
com o chapéu. A minha mãe dizia: "Hoje já não se usa chapéu, que horror, só
para certas cerimónias" e deixou de o usar. Então as senhoras da terra
deixaram de usar chapéu. Tinha uns truques assim. Ela era a referência da
vila, sobretudo por ser irmã de quem era. Mas só mais tarde é que percebi
esses truques da minha mãe. Fazia-nos crer que o que tinha de ser era uma
coisa muito boa. Ela dizia-nos, por exemplo, "quem se portar bem todo o dia, à
noite pode comer só sopa e castanhas e se alguma se portar mal, hoje perdoo-
lhe mas para a próxima obrigo-a a comer outra coisa". Posta a coisa assim,
achávamos que comer só sopa e castanhas era um privilégio... e ninguém se
portava mal. Só mais tarde é que eu percebi que era por economia. Ela era
extraordinariamente inteligente, usava esse estratagema para poupar as
crianças ao sentimento de falta. Lembro-me de uma vez a minha mãe tirar da
panela em que estava a fazer uma sopa, uma porção de feijão frade e grelos e
apresentar isso como conduto. Se calhar não havia em casa, naquele dia, mais
nada para comer "Temperem com bastante azeite, fica um prato muito
saboroso" (azeite colhíamos nós na quinta). Gostámos e... passou-se a comer
feijão frade e grelos uma vez por semana. Ninguém percebeu que era mais um
truque da minha mãe para poupar, porque carne... só a do porco que
matávamos uma vez por ano, mas que tinha de ser poupada para dar para
todo o ano, e a dos galináceos criados na quinta. Se calhar, é por isso que
ainda hoje não gosto de frango... tanto que comi naquela época.
Desde pequenina que tive uma ânsia de justiça muito grande. A injustiça
e a mentira magoaram-me sempre muito e elas andam normalmente juntas.
Lembro-me da perseguição política, pois tínhamos amigos perseguidos pela
PIDE. Devem conhecer, pelo menos de nome, o historiador António Borges Coelho.
É afilhado da minha mãe e esteve preso largos anos. A sua prisão
espoletou a reacção da minha mãe contra a injustiça das prisões políticas e
transmitiu-me essa ideia. Embora o meu pai tentasse proibir conversas do
género, a minha mãe interessava-se e conversávamos as duas do pouco que
conseguíamos saber, das injustiças, da opressão...
Tivemos sempre empregada em casa. Mesmo na aldeia, apesar das
dificuldades económicas em que ficámos a viver, com o meu pai tuberculoso,
sem poder trabalhar... fomos obrigados a ter uma porque eu e as minhas irmãs
éramos todas ainda crianças e a minha mãe começou a sofrer de uma doença
cardíaca grave, e era preciso ir buscar a água à fonte, levar a lavagem aos
porcos... Em Matosinhos até tínhamos criada de sala e cozinheira. A uma que
trabalhou em nossa casa perto de 50 anos, considerei-a sempre como que
uma segunda mãe, e quando se reformou continuou a frequentar a nossa casa
como visita. Não sabia ler, não tinha paciência para as lições que a minha mãe
lhe queria dar, mas era muito esperta e era um gosto ouvir as estórias que
inventava. Se tivesse recebido instrução acho que teria sido escritora.
Alguns dos costumes em relação às empregadas domésticas, naquela
época, cumpriam-se em casa dos meus pais, a farda, comerem na cozinha, tal
como os empregados da loja do meu pai; só na noite de Consoada é que iam
comer à mesa da sala de jantar, connosco, mas noutras coisas os meus pais
eram mais liberais e eram até criticados pelos amigos visitas da casa: à noite
as empregadas não trabalhavam. Acabavam de arrumar a cozinha, depois do
jantar, e iam sentar-se à nossa beira, a minha mãe ensinava-as a bordar, a
fazer renda e elas iam fazendo o seu enxoval. A alimentação delas era a
nossa, não havia nada fechado em casa, a fruta, os doces, o queijo... e isso era
o que mais criticavam os nossos amigos. Que era dar confiança ao pessoal...
Geralmente, as nossas empregadas só se iam embora para casar.
Na escola primária eu detestava História, talvez pelo modo como era
leccionada. O Borges Coelho era meu condiscípulo, quer dizer, as raparigas
eram separadas dos rapazes, na escola, mas convivíamos fora da escola; ele
já se interessava muito por História, no exame da 4ª classe pôs-se a discorrer
sobre História com teorias dele e foi um espanto, o júri ficou calado a escutá-
lo... O Antoninho, como lhe chamávamos, dizia-me quando alguma coisa que
nos ensinavam não era verdade. Afirmava que nos estavam a ensinar a
História errada. Isso, em vez de me entusiasmar pelo matéria, fez-me confusão
e passei a detestar a disciplina. Com a Matemática também se passou um caso
interessante. As aulas eram com um professor particular que não sabia nada
de Matemática e por isso nada me ensinou da matéria. Não sei como
conseguia passar de ano (ia prestar provas ao liceu de Vila Real). Talvez fosse
por ser boa aluna nas outras cadeiras. Depois, mais tarde, o curso de
secretariado no Riley Institute já era diferente. Era muito exigente, já como um
bacharelato, penso eu, não sei, a directora chamava-lhe assim. Ali tive aulas de
Português, de Inglês, de Francês, estenografia, dactilografia, contabilidade,
escrituração comercial, e aprendia-se a lidar com o PBX. Na altura era o PBX,
o contacto telefónico das empresas, não era o fax, o e-mail, a Internet, o
telemóvel, como hoje. Também tive algumas lições de Filosofia, rudimentares,
até é ridículo chamar-lhe lições, porque a professora era já velhota e penso que
doente, e passava parte das aulas a dormitar. A cada passo se saía com este
pensamento "A Alma é a própria memória. Meditem, meninos, meditem" e
adormecia, enquanto tentávamos meditar.
Em termos pedagógicos o ensino era muito austero, mas a minha mãe
não admitia que as professoras nos batessem. Uma situação de injustiça que
me irritou muito foi a da professora da 4ª classe que tinha uma filha também
sua aluna e, quando se irritava com a falta de atenção ou a ignorância duma
das alunas, era na filha que se vingava batendo-lhe nas pernas com uma régua
grossa e pesada. A filha gritava que metia aflição. Um dia, queimei a régua no
recreio, mas não valeu de nada porque a professora arranjou outra.
No início das aulas havia o ritual da Mocidade Portuguesa, a que era
obrigada a pertencer. Queriam impor aos meus pais a compra da farda, mas a
minha mãe recusou-se. Pagava-se 25 tostões de quota mensal. Tínhamos
ginástica, tínhamos canto, o Hino da Mocidade Portuguesa... e quando ia lá o
inspector tínhamos que fazer a saudação fascista.
Lembro-me dos quadros da escola primária (chamavam-se "As lições do
Estado Novo", acho que era assim) pretendendo representar o que tinha sido
Portugal antes do 28 de Maio e o que era depois, no tempo do Salazar. Claro
que contavam uma data de mentiras. A minha mãe denunciava-nos essas
mentiras e então quando uma vez um inspector disse que "dantes os campos
não eram trabalhados; agora são e os donos dos campos andam assim bem
postos e têm estas casinhas bonitas", eu repontei: "isso é mentira porque o Sr.
Fonte Fria e o Sr. Romão são pobres e vivem em casas a cair".
Actividade Profissional
Depois que terminei a escolaridade, exigi sempre aprender mais alguma
coisa. Foi quando fui para o Riley Institute. Esse instituto ainda existe aqui no
Porto. Na altura tinha várias disciplinas a que a directora chamava, talvez
pomposamente, curso de secretariado. Preparei-me com esse curso e
empreguei-me aos 18 anos no escritório duma fábrica de conservas muito
conhecida – A Adão Polónia e Cª. Era em Matosinhos, em 1946, e fui ganhar
750$00. Passados uns meses estava a ganhar 800$00. E houve homens que
se zangaram comigo porque eu "estava a roubar o lugar a um homem, a um
chefe de família". Hoje penso se esse salário não tinha a ver com os favores
que o patrão devia ao meu pai.
Havia um contrato de trabalho. Trabalhávamos das 9 ao meio-dia e das
2 às 6 horas. Folgávamos aos Sábados de tarde e aos Domingos. Depois,
zanguei-me e saí, ao fim de 3 anos, porque não me deixavam sair à hora,
cumprir o horário. Já se recebia subsídio de Páscoa e de Natal, e tínhamos um
mês de férias. Era a empresa que melhor pagava e todos tínhamos umas
certas regalias, mesmo os operários. Eu sei, porque lidava com os mapas dos
vencimentos do pessoal da fábrica. Pertenciam ao Sindicato do Pessoal das Conservas.
Só que o sindicato era do Governo. Fazia-se uma reclamação ao
sindicato – apesar de tudo sempre havia uma razão ou outra para reclamações
- e o funcionário telefonava logo para o patrão, a avisar.
Pagar melhores salários do que o usual na época não era propriamente,
como direi... com a intenção do patrão fazer justiça. Ele era muito rico, mais
despesa, menos despesa... era esperto. Pagar bem era a maneira de o
servirem melhor. Contudo, assisti a cenas que me marcaram e reforçaram em
mim o desejo de lutar contra as injustiças desses fascistas. Recordo um caso
flagrante do mau carácter do patrão. Um operário tuberculizou e alguns de nós
lembrámo-nos de pedir ao chefe que deixasse o moço ir algum tempo para
uma quinta que ele tinha e onde o doente poderia usufruir não só de ares mais
saudáveis mas também de melhor alimentação, a troco de algum trabalho leve
que prestasse no campo. Resposta do tipo: "Olha lá, tu não és casado com
fulana? Ela ainda é jeitosa como quando casaste? Manda-ma cá falar comigo e
depois vê-se..."
Essa e outras fizeram azedar as minhas relações com o patrão e acabei
por me despedir do emprego. Vi lá muitas sacanices daquele género, não vou
gastar tempo a contá-las, mas vi.
Fiquei sem emprego e, temporariamente, sem vontade de experimentar
outro. Meteu-me muito medo aquele, e, como queria continuar a estudar e
gostava muito de línguas estrangeiras fui para o Instituto Britânico. Porém, o
meu pai dizia que não podia ter dois empregados na loja e obrigava-nos a
ajudá-lo. Duas das minhas irmãs casaram-se, entretanto, e o meu pai pôs-me a
trabalhar com ele. Eu detestava aquele serviço, nunca tive jeito para
empregada de balcão, era emprego que não me dava possibilidade de evoluir.
Consegui que me deixasse ir dar aulas de inglês (num colégio particular porque
eu não era licenciada) e em casa dava explicações. Além disso, fazia
trabalhinhos em malha para criança, que o meu pai vendia no estabelecimento
e me rendiam uns tostões. Sempre dava para ir ao cinema, ao teatro, a
concertos, comprar vestuário e calçado a meu gosto. O meu pai deu-me uma
única vez dinheiro para ir ao cinema: 5$00... e o bilhete já custava 7$50. A sua
noção de educação era assim.
Mesmo depois de casada, nos primeiros tempos, dei explicações em
casa. O meu marido também achava que não devia trabalhar fora. Casei com
32 anos. Durante muito tempo não quis namorar, não queria estar presa.
Prisão já eu tinha muita. O facto de estar empregada deu-me uma certa
independência, mesmo em relação ao meu pai. Mas até para ir ao cinema tive
de lutar. Da primeira vez que fui ouvir um recital do João Vilaret, o espectáculo
começava às 6h e acabava às 8h, mas a essa hora já nós tínhamos que estar
em casa, na sala de jantar, à espera que o meu pai se sentasse à mesa. Por
isso só vi metade do espectáculo, mas mesmo assim apanhei um grande
sermão. "Então amanhã vou ouvir todo o recital e vou chegar provavelmente às
9 ou 10 horas da noite. Não vale a pena perder metade e ouvir o sermão na
mesma". No dia seguinte, o meu pai não fez nenhum sermão. Ficou só
amuado. Quando eu ou a minha mãe reclamávamos um direito, sentava-se à
mesa mas não comia. E nós deixávamos passar a onda. As minhas irmãs não
fizeram isso, não lutaram.
Casei em casa, pelo Civil. Não sou religiosa. Vocês perguntaram-me se
o meu pai não seria protestante, que parecia ter o espírito de protestante, mas
não; ele era católico fanático. Mais por tradição e por falta de cultura, mas era.
A minha mãe tentava que ele não nos impusesse as suas ideias, mas duas das
minhas irmãs seguiram-lhe as pisadas. Eu já em novita tinha dúvidas e
conversava com padres para as aclarar, mas a minha razão, as leituras,
fizeram-me ateia. Então, antes de me apresentarem ao rapaz que depois foi
meu marido, avisei logo: "não vale a pena perder tempo se ele for religioso ou
salazarista" (na altura não se usava muito o termo fascista), felizmente ele não
era nada disso. Não tivemos filhos. Engravidei mas abortei devido a um
acidente e nunca mais tive filhos.
O meu marido também não queria muito que eu trabalhasse fora de
casa, mas é uma pessoa progressista. As circunstâncias levavam-no a essa
atitude ",machista". Nasceu no Algarve e tirou um curso da Escola Agrícola,
que é o que hoje chamam de engenheiro técnico agrário, era então regente
agrícola. Estava a concluir o curso em Évora quando o pai faliu e a família veio
viver para o Norte. O meu marido não conhecia cá ninguém, tinha uma irmã
mas ela também não tinha amigas aqui, portanto ele não tinha outro contacto
com raparigas que não fosse sem sentido malicioso e assim como era, assim
julgava os outros e por isso naquela altura achava que não era conveniente
uma rapariga trabalhar fora de casa... Na Escola Agrícola eram só rapazes e
estava muito "fechado" por isso. Depois, conhecemo-nos. Dei-lhe logo a
conhecer as minhas vontades que achava justas, dizer-lhe "eu sou assim e
quero ser assim"– os decotes, o fato de banho, as calças compridas, tudo isso,
que eram coisas menores, mas que tinham sido uma luta junto do meu pai,
como também pelo respeito pela minha maneira de pensar, pelo desejo de me
melhorar culturalmente, o direito a uma certa independência. Vi que tinha o
terreno adubado para boa colheita, com as nossas conversas, porque o meu
marido é um homem inteligente, com muito gosto pela leitura, por se cultivar,
por evoluir, e assim foi facílimo convencê-lo em concordar que me
empregasse.
O Cineclube do Porto foi o meu primeiro emprego depois de me casar.
Aliás, o primeiro e o último. Entrei para lá para a Secção de Cinema Infantil,
porque escrevi um livrinho de estórias para crianças e isso deu-lhes a ideia de
me convidarem para colaborar na secção. Pertenci também aos corpos
gerentes. Abandonei o cargo quando fui trabalhar para a secretaria, convidada
por Alves Costa, um dos fundadores do Cineclube e que estava na altura, na
direcção e me disse "sabe, fazia muito jeito que ficasse aqui como funcionária"
e, lembro-me acrescentou que só exigia que eu continuasse, a par de
funcionária, a ser também a colaboradora que fora até então. Eu, ainda nos
corpos gerentes do Cineclube, já judava muito na secretaria, ia organizando
serviços, com a prática de escritório que tinha, e colaborava com a organização
de algumas actividades. O horário é que era muito mau porque tinha que
trabalhar à noite e o meu marido tinha que começar a trabalhar cedíssimo. Era
um desencontro. Mas conversámos, ele viu que eu tinha realmente gosto em
trabalhar e ter alguma independência, e apoiou-me. A dificuldade do
"desencontro" resolveu-se com a obtenção da carta de condução que me
permitia regressar sozinha a casa, à noite, portanto sem necessidade de
sacrificar o necessário descanso do meu marido.
Foi um tempo muito bom. Entrei para lá em 1972. A direcção tinha a
preocupação de dar todos os direitos aos seus funcionários, mas o ordenado é
que era pequeníssimo, compreensivamente, porque a associação não tinha
fins lucrativos. No 25 de Abril é que fiquei a ganhar 3.300$00, o salário mínimo
que o Vasco Gonçalves instituiu. E quando me reformei, em 1990, não chegava
a ganhar 50 contos, e saía de lá, quantas vezes, à 1 e 2 horas da madrugada.
Porque queria, porque não era possível "gerir" doutra maneira. Digo "gerir"
porque imensas vezes a minha tarefa de funcionária da secretaria era aliada à
tal função de colaboradora que o Alves Costa me havia pedido que nunca
abandonasse.
Tive algumas oportunidades de melhorar a minha situação
economicamente. O Jorge Araújo, da Editora Campo das Letras, na altura tinha
saído da prisão, estava num jornal e veio convidar-me para ir para lá trabalhar.
Eu recusei, por causa Cineclube. Gostava muito do trabalho que fazia e do
convívio que tinha. Ali aprendi muito, com pessoas muito cultas. Coisas
desagradáveis há sempre onde há muita gente, cada uma com a sua maneira
de ser e de pensar, mas o saldo foi mais que positivo. Só saí de lá por reforma.
A princípio, tinha pensado continuar mesmo depois de reformada, mas o
Cineclube, entretanto, passou a ser gerido em moldes diferentes, já não me
dizia nada. Era mais um trabalho de escritório e eu não tinha pachorra para
trabalhar sem tarefas criativas, como até aí. Eu tinha sofrido uma operação de
certa gravidade, estava com baixa, e resolvi sair definitivamente.
Actividade Sindical
Quanto ao movimento sindical, como já disse estive na direcção do
Sindicato da Actividade Cinematográfica mas aí não fui muito eficiente. Foi uma
desilusão. Os empregados de cinema são (ou eram, pelo menos) trabalhadores
em part-time, quase todos, têm outra profissão e é essa que tem valor para
eles. Ainda estive lá uns anos, houve algum entusiasmo no princípio, votações
de punho no ar, mas depois agir... só poucos, os mais conscientes, não é? Foi
um trabalho difícil e sem resultado. Pela minha parte, a única coisa que
consegui foi que as projecções fossem feitas em melhores condições, porque
em muitos casos não o eram. Quando ia com colegas do sindicato aos
cinemas para consciencializar os trabalhadores a sindicalizarem-se e a lutar
pelos seus direitos, aproveitava e tentava criar-lhes o brio pela sua profissão, a
incitá-los a fazerem um bom trabalho. Acho que foi a única coisa que fiz de
positivo no sindicato.
Perguntaram-me se a partir do 25 de Abril continuei no Partido Comunista
e no Cineclube. Continuei no Cineclube não era um trabalho
partidário. Claro que havia toda uma acção que eu procurava que fosse
progressista, própria duma comunista, mas quando entrava na porta do
Cineclube não era mais do Partido, compreendem? Era um trabalho político
mas não partidário, não podia ser porque a massa associativa era de várias
ideologias. Isso foi uma coisa que eu me impus a mim mesma, o não
sectarismo no local do trabalho. Houve no Cineclube, como em todo o lado,
pessoas chamadas da extrema esquerda e outras que se diziam dessa
esquerda mas que só estavam lá para boicotar o trabalho que a verdadeira
esquerda pudesse fazer. Acusavam-me de ter funções controladoras do
Cineclube a mando do Partido Comunista e fizeram-me uma perseguição
estúpida. As paredes do hall do Cineclube tinham inscrições até ordinárias. Foi
preciso um pulso muito forte, um espírito forte, para resistir àquilo tudo, mas aí,
lá está, era uma luta progressista que tinha de travar e lá tentei aguentar. Tive
um trabalho cansativo, acabei por ter um esgotamento, afinal, porque alguns
directores menos combativos "demitiram-se" da sua função e eu, várias vezes,
tive que fazer de gerente do Cineclube, subtilmente, claro, e se as coisas
corriam bem... era trabalho da direcção, se corriam mal "olhem, digam que a
culpa é da funcionária..." Era assim que eu queria.
Depois reformei-me, como já disse, sobretudo porque as tarefas no
Cineclube eram mais de escritório e disso não gostava. Gostei de lá estar
enquanto podia ter uma acção de criatividade, de colaboração. Vim fazer
coisas de que gostava mais e estavam "na gaveta", como escrever. No tempo
do fascismo colaborava no suplemento infantil do Jornal República, escrevia
histórias para crianças, procurava ter um trabalho formativo. Havia muitas
coisas que eram cortadas pela censura, mesmo nessas histórias. Mais tarde,
escrevi no Suplemento Juvenil do Diário de Lisboa. No Jornal A Terra, posso
ter tido um artigo ou dois, mas o meu marido é que colaborava muito com
artigos ligados à actividade agrícola. Eu colaborava mais na parte de escritório,
digamos.
Publiquei um livro, há pouco tempo, nada assim de valor; é referente a
pessoas de Matosinhos, às que foram importantes para mim. São recordações
que tenho da minha terra, das suas gente, da romaria do
Senhor de Matosinhos, do cinema local... Foi o Jornal de Matosinhos, o seu director que
quis publicar esse livro. Colaboro no jornal com contos e reportagens.
Tive sorte em ter um companheiro que também gosta de escrever. Até
isso nos une. Concorremos a concursos de literatura para a 3ª idade e vamos
obtendo alguns prémios. Sobretudo gosto de fazer reportagens e é engraçado,
eu, que nunca gostei de História, agora quando vou visitar qualquer terra aqui
em Portugal ou no estrangeiro, até vou pesquisar a História dessas terras. Ando
pelas bibliotecas a procurar...
É uma forma de dar um sentido menos inútil à minha vida...
Actividade Associativa
Fui sócia, além do Cineclube do Porto, onde, como já disse, também
pertenci aos corpos gerentes, sócia do Teatro Experimental, do Grupo dos Modestos,
onde fiz parte também da direcção, assim como da direcção do
Jornal A Terra, da do Sindicato Actividade Cinematográfica, sei lá que mais!
Colaborei no Grupo de Informação e Propaganda da Agrinorte – Comissão de
Apoio ao Cooperativismo e Associativismo Agrícola, estive na Comissão Fundadora da CNA,
e fui ainda sócia de várias Associações de Amizade com
os Povos dos Países de Leste, com o Povo das Antigas Colónias Portuguesas,
com Cuba e de algumas outras Associações Culturais e Recreativas do Porto e
dos arredores. Dei a algumas delas colaboração. Pouca, conforme a minha
disponibilidade, que era muito reduzida porque o Cineclube ocupava-me
realmente imenso tempo. Foi uma actividade muito boa, sobretudo com jovens.
É uma alegria quando hoje encontro algum – esses moços já estão agora na
casa dos quarenta – e me fala da importância que tive na formação do seu
carácter e no gosto pela cultura... Isto é muito agradável. Faz-me pensar que a
minha vida não foi de todo inútil...
Das primeiras associações a que pertenci foi à da Orquestra Sinfónica do Porto,
ainda eu era solteira. Ia aos concertos, claro que sempre na
companhia de casais amigos, senão o meu pai não deixava ir. A exposições
quem me acompanhava muito era o Zé Cayolla, porque a essas podia-se ir de
dia. Quando morreu, era director do Auditório Nacional Carlos Alberto. Éramos
vizinhos, amigos de infância, muito amigos. Era um homem culto que me
ajudou a sê-lo também um pouco. No dia em que recebíamos o ordenado,
íamos comprar livros. Os primeiros livros que ambos comprámos eram
horríveis, mas eu guardo-os como recordação. Aqui vem-me à memória um
afilhado de guerra que tive, aos 14 ou 15 anos, e que me ofereceu um livro da
Max du Veuzit. Era a coqueluche das meninas, mas não fui capaz de o acabar
de ler. Aquela literatura não me dizia nada.
A minha mãe incutia-nos muito o gosto pela leitura. Nos nossos serões
na aldeia, não havia rádio porque não havia electricidade e então a minha mãe
punha-nos a ler uma página de um livro que a "boa moral" nos permitisse ler.
Tinha obras de Eça de Queiroz, por exemplo, mas não as podíamos ler, não
eram próprias para meninas... Quando acabamos de ler os livros que a minha
mãe possuía, ela pediu emprestado a um afilhado, que dava aulas de Francês
à minha irmã mais velha, e ele trouxe "O Colar da Rainha", "Os Três
Mosqueteiros", "D`Artagnan não sei quantos" e nós tínhamos que ler uma
página todas as noites antes de nos deitarmos. As orações da noite da minha
mãe eram essas; nunca nos ensinou outras. Tínhamos que ler alto e voltar
atrás se líamos mal e não tivéssemos feito a pontuação como devia ser.
Lembro-me da minha mãe nos ensinar "quando houver uma vírgula, para-se o
tempo de se contar UM, em pensamento; quando houver um ponto e vírgula,
conta-se UM, DOIS; quando houver um ponto final conta-se UM, DOIS, TRÊS".
Ensinava-nos a ler, todas nós líamos por isso muito bem. Portanto, este gosto
de participar em associações e tudo isso, não era bem o contraponto à falta de
liberdade, não era só a luta por essa liberdade, era muito o gosto pela cultura
incutido pela minha mãe.
Actividade Social e Política
A primeira manifestação de que me lembro assistir foi no fim da guerra,
em 1945. Eu ia para uma aula e vi muito movimento. Disseram-me que tinha
acabado a guerra. Quer dizer, eu já sabia que ela tinha acabado, lembro-me
que até nesse dia a minha mãe fartou-se de cantar a Marselhesa, foi quando
os aliados desembarcaram na Normandia. Ela gostava muito da Marselhesa e
também cantava a Portuguesa, mas com as estrofes todas que são mais do
que as que usualmente cantamos. O que eu não sabia é que havia festa no
Porto, na Baixa, e então fui para a festa. Fiquei muito surpreendida por a
polícia andar a bater, quando era tão bom a guerra acabar. Uma coisa na
guerra que me angustiou muito foi ler no "Primeiro de Janeiro" sobre o
massacre dos nazis em Oradour-sur-Glane, uma aldeia francesa que eles
queimaram com o povo fechado na igreja, que também queimaram. Morava na
nossa vizinhança, em Matosinhos, um judeu polaco, o Sr. Schelmik, que tinha
fugido aos nazis e nos contava algumas coisas dos massacres dos nazis, muito
em segredo, fez-se muito nosso amigo. Mas um dia um telefonema chamou-o a
Lisboa, diziam que era da embaixada e ele apareceu morto numa rua, com
tiros na cabeça. Dizia-se à boca pequena que tinha sido a PIDE porque
descobrira que o polaco era comunista. Por ele já sabíamos dos campos de
concentração, mas até nos custava a acreditar e o meu pai não nos deixava
falar nisso.
Bem, eu só não apanhei na tal manifestação porque fugi. Mas a polícia
batia porque não eram permitidas manifestações de rua, e o Salazar até
decretou luto nacional e mandou pôr a bandeira a meia haste pela morte do
Hitler. Quando cheguei a casa e disse ao meu pai, ingenuamente: "acabou a
guerra, uma coisa tão boa, e a polícia andava a bater", apanhei cá um sermão!
"E onde é que tu estavas para ver o que a polícia andava a fazer!?"
A segunda manifestação, só quando foi do Humberto Delgado. Também
sem grande consciência política, ainda, acho que era por ter a minha mãe
como modelo. Ela contava coisas do tempo dela, das lutas que havia para a
Implantação da República, sobretudo entre o exército e a marinha - a marinha
era mais progressista. De quando iam prender o meu tio, e a minha mãe pôs as
mãos à porta e disse: "aqui não entra ninguém porque só há crianças e velhos
aqui em casa", e viram a firmeza da minha mãe e não entraram. Ela morava
em Lisboa, junto a um quartel do exército contra o qual os marinheiros estavam
a lutar. A minha mãe contava que vestia um capote do meu tio, sem ele saber,
e ia levar de comer aos marinheiros abrigados nos portais em frente á casa
onde ela vivia. Mais tarde pude ver ainda os sinais de balas na porta da casa
que uma vez os militares dispararam contra a minha mãe, mas ela não sofreu
nada.
Quando foi do Humberto Delgado, eu andava no Instituto Britânico. Em
frente havia o Instituto Industrial, e alunos de lá andavam a recolher
assinaturas e dinheiro para a campanha do general Delgado. Pedi-lhes para
entrar no grupo e lá fomos para a sede da campanha, que era em Carlos Alberto,
buscar propaganda e uma saquinhas que eles forneciam para recolher
o dinheiro. Era uma aventura. O meu pai nem sonhava e eu ia sendo expulsa
do instituto por pedir dinheiro lá dentro. O engraçado é que eu estava
convencida que só o nosso grupo é que arranjava dinheiro para a campanha. É
que enchemos muitas saquinhas...
À manifestação de apoio ao General Humberto Delgado fui com o meu
marido, noivo, na altura, e o meu pai já não podia fazer nada, só dizia que eu
era maluca e que tinha arranjado um namorado maluco e meio.
Em 1961 começa a Guerra Colonial. Não tive lá ninguém, mas vivi-a de
certa maneira, pois um cunhado meu era chefe de posto em Angola. Houve o
célebre Massacre de Nambuangongo, em que mataram todos os homens, e as
mulheres ficaram presas, com as crianças, no campo de Machava. O meu
cunhado não participou directamente no massacre, mas cedeu o recinto para
fazerem esse crime. Cometeu muitos crimes contra a população africana. Era a
mentalidade dele. Era mau até para a família. Quando vinha a férias, contava-
me tudo como se fosse um grande feito patriótico. E esses feitos foram de tal
forma "heróicos", que estava à cabeça da lista dos colonialistas a serem
julgados pelo Movimento de Libertação Angolano. Conseguiu fugir aquando da
independência de Angola, andou escondido e só apareceu quando não havia
perigo, quando a nossa democraciazinha condecorava pides. Por mim, não
quis mais ter contacto com ele.
Fui madrinha de guerra por uma brincadeira, tinha 14 anos, portanto
antes da Guerra Colonial. Já na altura gostava muito de escrever e um dia
escrevi um artiguinho para a Revista Eva, que a minha mãe assinava e onde
colaboravam a Maria Lamas e outros escritores democratas. Na revista vinham
lá militares em serviço nas colónias a pedir madrinhas de guerra. A directora da
"Eva", Carolina Homem Cristo, entusiasmou-me a corresponder-me com um
miliciano. Era um moço culto, foi agradável trocar correspondência com ele,
nesse aspecto, mas era também um racista. Lembro-me de descrever a
situação de Goa, onde se encontrava, orgulhando-se do "respeitinho que esta
escumalha tem pelos portugueses".
Em 1974, no dia 16 de Março, houve uma grande manifestação no Porto
contra o aumento do custo de vida. Tenho uma história muito curiosa desse
dia. Já pertencia ao Partido Comunista, na clandestinidade claro, entrei em
1968, creio, e tinha ordem para distribuir uma papelada por várias pessoas. Era
o Avante e uns panfletos. O minha controleira era a Manuela Medina. A última
distribuição era a uma moça que iria ter ao Orfeu, a Sara. Quando a visse
chegar, levantava-me, ia à casa de banho, tirava a papelada que trazia
escondida dentro da cinta, a Sara batia três pancadinhas na porta, eu saía e
ela agarrava a papelada. Às 4 horas eu tinha de me encontrar na Praça com
outras mulheres, para a manifestação, uma delas era a Lailai, mãe do Jorge Araújo.
Só que eu esperei, esperei e a moça não apareceu. Como era perigoso
ir para a manifestação com aqueles papéis no corpo, regressei casa sem
passar pela Praça. No dia seguinte a Lailai encontra-me e censura-me por ter
falhado ao encontro "Então não apareceste? Tiveste medo?" Não lhe podia
responder, embora calculasse que ela e a família também fossem comunistas.
Uma semana depois dá-se o 25 de Abril e, claro, larguei sacos e bagagens, e
fui para a Praça. Logo a Lailai me atira "Ai, agora já vens?". Então já lhe pude
contar o que acontecera e ela confirmou que a Sara, que até vivia em casa
dela, realmente no dia da manifestação fora para a Maternidade fazer
companhia a uma irmã, que estava em trabalho de parto.
Se não fosse o 25 de Abril era capaz de ter problemas com a PIDE,
porque uns dias antes tivemos a casa vigiada. Já tinham sido presas várias
pessoas em Matosinhos por causa da proximidade do 1º de Maio. Quando
cheguei do trabalho no Cineclube, por volta da meia-noite, estava em frente à
casa um pide, daqueles que não enganavam ninguém, chapéu de abas largas,
óculos escuros... Não me apercebi logo que fosse por minha causa. Mas
quando vou levantar a roupa que deixara a secar no meu terraço, no 3º andar,
descubro um tipo semi-escondido por uma coluna, nos terraços do rés-do-
chão, nas traseiras da casa, para onde era fácil entrar porque a porta de
serviço não tinha muita segurança. Recolhi-me, apaguei as luzes e fiquei à
espera do que iria acontecer, mas, não sei porquê, o pide retirou-se passadas
umas horas. Se estava a planear voltar noutro dia, os planos saíram-lhe
furados porque daí a dias deu-se o 25 de Abril. Sei que tinha ficha na PIDE,
porque houve pessoas que a viram quando foi o assalto às instalações deles
no dia 26 de Abril. A fotografia na ficha notava-se que fora tirada á porta da
Cooperativa Árvore, disseram-me. Penso que na altura de um colóquio que foi
proibido e os pides fotografaram várias pessoas. Então já eu era casada, mas
ainda em solteira, a PIDE tirara informações minhas junto de um vizinho nosso
alegando que era para admissão num emprego em Lisboa. "Sabe dizer-me se
ela é boa rapariga, se não se mete em política?" E o meu vizinho muito
inocentemente: "Ó que o pai deixava-a!...". Esta inocência do meu vizinho é
capaz de me ter salvo dalgum incómodo, e eu até nem tinha propriamente
actividade política nessa altura... estão a ver... sob a tutela do meu pai... e
também, ainda muito "verde" politicamente... relacionava-me era com pessoas
que já tinham sido presas, era notório que era contra o Governo Fascista, tinha
andado com um comunista, o Dr. Ruela, a distribuir alimentos pelas famílias de
pescadores que estavam em greve, sem o meu pai saber, claro, mas pouco
mais.
A morte de Salazar, em 1970, acho que foi sentida como um alívio. Mas
interessava depois era combater o Caetano, porque a política era mesma, ao
fim e ao cabo. Houve uma ligeiríssima abertura, mas breve, porque a repressão
aumentou até em relação aos últimos anos de Salazar. Eu pertencia à
Comissão Regional de Socorro aos Presos Políticos, e tínhamos informações
de que houve muitas mais prisões. Nos Congressos de Aveiro, por exemplo,
sabíamos que o Governador Civil mandava à PIDE uma lista das pessoas que
se hospedavam nos hotéis e nas casas particulares, durante o congresso, e
este acabado ia uma série de pessoas presas.
A princípio, quero dizer, às primeiras notícias, o 25 de Abril não me
alegrou. Eu dizia que era uma "Spinolada" e só quando vi que os presos
políticos estavam a sair em liberdade é que me convenci que era mesmo uma
revolução anti-fascista.
A repressão fascista sobre as mulheres era muito grande. Eram
segregadas, no trabalho, em casa, na sociedade em geral – aliás, hoje, ainda
há muito a modificar para melhor. Sabia-o eu. Contudo, o meu trabalho nunca
foi propriamente ligado ao movimento feminino, era mais de denúncia geral, de
outras injustiças que, afinal, atingiam tanto os homens como as mulheres. Era
no autocarro, no eléctrico, no mercado, que procurava meter a colherada nas
conversas e denunciar. Mas participava em iniciativas do Movimento Democrático das Mulheres
e, a propósito, lembro um jantar no restaurante
Casa Branca, em Lavadores, onde o MDM conseguiu reunir mais de 90
mulheres de vários estratos sociais. Isto, no tempo do fascismo, era lança em
África...
Fala-se muito no papel do Bispo do Porto, António Ferreira Gomes, na
luta pela democracia e eu tenho uma má ideia do papel dele. Uma vez
pediram-me para marcar uma entrevista com o Bispo. Éramos um grupo de
mulheres ligadas à Comissão de Socorro aos Presos Políticos, todas familiares
de presos políticos, excepto eu. Em 1958 – acho que foi em 1958 - o Bispo
escreveu aquela célebre carta ao Salazar e teve que se exilar, ou exilou-se, ou
lá o que quer que foi. Quando regressou, nós pensámos que ele poderia fazer
qualquer coisa pela libertação dos presos, havia os que estavam muito
doentes, um estava em cadeira de rodas, a sofrer muito, eram torturados, e
como ele era consultor espiritual, ou qualquer coisa assim, de deputados
"liberais", como o Sá Carneiro e um José da Silva – que dava dinheiro para os
presos políticos mas depois do 25 de Abril foi advogado defensor de pides –
pensámos que ele podia intervir. Foi o secretário do Bispo que me atendeu ao
telefone e eu disse que havia um grupo de mulheres que querim conversar com
o Bispo, com o Sr. Bispo, foi assim que disse, claro, mas não revelei o
assunto, não podia fazê-lo pelo telefone. Durante o encontro, o Bispo
perguntou-me que familiar tinha eu na prisão. Disse que nenhum, e ele, com
um sorrisinho que achei demasiado inquisidor, perguntou-me porque era que
então eu estava ali. Fez-me a pergunta três vezes. Respondi sempre: "por
solidariedade".
A certa altura veio um padre pedir para ele assinar uns papéis, ele
levantou-se e arredou o cadeirão onde estava sentado. Debaixo havia um
aparelhinho, pequeno, com uma luzinha acesa. Chamei a atenção das
companheiras... ela sussurraram que era um aquecedor, mas aquela porcaria
não deitava calor. Isto foi no Inverno, por altura do Natal. Bem, o Bispo ouviu-
nos mas tenho uma ideia que ele falou mais dele próprio do que nos ouviu. E
teve uma saída que não me agradou nada. Uma perguntou se fora o Caetano
que o deixara regressar do exílio e ele respondeu, a armar-se em herói,
pareceu-me: "Ai, se ele não consentisse eu vinha na mesma!". Não sei, não
gostei daquela frase. Ele acompanhou-nos à porta quando saímos. Tinha sido
tão ambíguo que eu não percebera se ele afinal ia assinar os papéis que lhe
leváramos a pedir a libertação dos presos, se ia fazer alguma coisa por essa
libertação. Ao despedir-me perguntei "Quando podemos vir buscar o abaixo-
assinado?" e ele então teve de ser claro, disse que se fosse para intervir pela
libertação de um só preso, fazia isso, mas por muitos já era uma atitude política
que não era para ele. Fiquei... estão a ver... pior que baratas e acho que ele
percebeu. No ano seguinte, pediram-me para ser eu outra vez a marcar novo
encontro. Quando fiz a ligação o secretário, que era quem atendia os pedidos
de entrevistas, diz-me, antes de me apresentar "É a D. Eunícia Salgadinho que
está ao telefone? A senhora tem uma voz tão característica que é difícil
esquecer". Ora ele só falara comigo uma vez um ano antes e ao telefone!
Ninguém me convence que aquele aparelhinho não era um gravador.
Em relação ao sofrimento dos presos políticos e dos seus familiares,
lembro-me, por exemplo, quando a comissão conseguiu levar crianças
familiares dos presos a visitá-los a Peniche. A mulher dum preso, a Helena,
saiu muito triste da visita ao marido. De manhã tínhamos levado a filha à visita
e à tarde foi ela. Ao almoço ela comeu de dieta porque se sentia adoentada e
quando sugeri que levasse o nosso carro para regressar a Lisboa porque nós
íamos ficar uma semana em Peniche e o carro não ia fazer-nos falta, ela
agradeceu mas que justamente não tinha vindo no seu carro por se sentir
incapaz de conduzir. Durante o almoço conversou muito bem, estava bem
disposta, apesar de se sentir adoentada. Depois foi à visita, saíu com aquele ar
triste, muito perturbada, e quando chegou a casa matou-se, atirou-se dum 5º
andar. Portanto, se ela teve o cuidado de fazer dieta por se sentir mal disposta
do estômago, se teve o cuidado de não conduzir porque não se sentia em
condições de o fazer e horas depois se suicidou, é porque alguma coisa
aconteceu dentro daquela prisão. Ouvi dizer que forma os pides que a
difamaram e dá bem para acreditar.
Em 1975 o MFA formou uma Comissão Dinamizadora das Populações e
fui "cravada" para colaborar. Ia para aldeias de Trás-os-Montes onde não havia
nada, nada, nada. A comissão pediu apoio à Junta Nacional das Frutas que
queria um técnico agrícola para fazer dinamização junto dos camponeses,
convencê-los a formar cooperativas, uniões de agricultores, essas coisas. Luta
diferente da que se fazia no Alentejo. No Norte não era a mesma reforma
agrária que se podia organizar. O delegado da Junta mandou o meu marido,
que nessa altura já era declaradamente comunista e o delegado, apesar de
direitinha ou por causa disso porque ainda andava acagaçado, lá pensou que o
meu marido era a pessoa certa para o género de trabalho naqueles tempos de
revolução. Entretanto, o MFA pediu ao Cineclube para alguém ir fazer sessões
de cinema para crianças. Juntou-se tudo e fui com o meu marido. Bem, os
filmes não foram só para crianças, foram para todos, que nunca aquelas
pessoas tinham visto cinema. Lembravam-se do teatro, que há uma tradição
muito bonita em Portugal de teatro popular nas aldeias. O Salazar é que
acabara com isso, por não querer muita gente junta a pensar.
Mas não era possível naquela situação limitarmo-nos a passar os filmes.
Tivemos que ajudar noutras tarefas dos militares porque havia tanto para fazer,
tanto... Não havia nada naquelas aldeias, não havia condições de saúde, de
habitação, de higiene, não havia estradas, não tinham maneira de se
deslocarem aos hospitais, aos poucos que havia e todos longe das aldeias;
alguns doentes ainda se deslocavam de carro de bois, mas outros já não
podiam, e morriam sem tratamento.
Não era possível ficar impassível, limitarmo-nos a exibir filmes, tinha que
haver toda uma dinamização junto dessas pessoas, entusiasmá-las a lutarem
pelos seus direitos, a abandonarem o medo que as tolhera durante o fascismo.
Foi um trabalho muito importante, senti-me útil. Depois de terminada a nossa
colaboração... oficial – digamos assim – na campanha, continuámos, o meu
marido e eu, a contactar algumas daquelas pessoas, a mandar-lhes livros,
material escolar, sobretudo com jovens e foi a partir daí, da dinamização do
MFA, que eles formaram associações, cineclubes, o de Bragança, por
exemplo.
O meu trabalho e do meu marido no partido era ligado ao sector
camponês. Gostava muito do trabalho com os camponeses. Quando hoje vejo
qualquer manifestação justa - porque as há erradas - de camponeses, por
exemplo, da Confederação Nacional de Agricultura, penso para mim: "fomos
nós que começámos". Nós, o grupo que de qualquer modo foi dinamizando os
camponeses, os rendeiros; foram os militares, foram os comunistas e outros
democratas. Quando se formou a CNA, eu é que fui entregar à mesa o
documento da sua fundação. Parecia que ia levar a felicidade e a liberdade às
pessoas. Uma ilusão, apenas. Trabalhei para a fundação da CNA e de outras
associações de camponeses.
|