Júlio Duarte
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me António Augusto Duarte e nasci em Novembro de 1911, na
Rua Latino Coelho, em Coimbrões. Vivos, éramos sete irmãos e eu era o segundo.
A minha mãe nasceu aqui em Coimbrões e o meu pai era natural de Lamego.
O meu pai veio de Lamego para cá trabalhar para a casa do meu avô que tinha
uma empresazinha de fogos de artifício e entretanto casou com a filha.
Passado dois anos o meu avô morreu e o meu pai ainda ficou a trabalhar com
a sogra. Depois separou-se porque tinha de trabalhar independente e fez fogos
de artifício por conta própria desde 1913 até 1961, até que deixou pela idade. A
casa do meu pai era do lado de lá da auto-estrada, na estrada da Madalena.
Tinha um pátio grande. Vivi ali até aos 36 anos, quando me casei. Casei na
Igreja Evangélica, no Porto. O meu pai era católico e eu e todos os meus
irmãos fomos baptizados. Todos os filhos fizeram a comunhão. Mas eu sou
protestante porque na escola de prática que era do Diogo Castro, eles ao
Domingo iam lá à Igreja e eu fui aprendendo e gostando porque naquele
tempo a missa era em latim e eu não percebia nada. Eu gostava de ir à minha
Igreja. É que na Igreja que eles chamavam protestante era tudo em português.
Fiz a escola primária na Escola do Prado que era particular e à tarde tinha
aulas secundárias na Escola Comercial Oliveira Martins que, em 1924,
funcionava no Palácio da Bolsa. As nossas aulas chamavam-se Cursos
Nocturnos. Fiz o 3º ano comercial. Uma irmã foi para o liceu e foi professora.
Outro irmão andava também na Escola de Oliveira Martins e depois quis fazer
admissão ao Instituto Comercial. Para fazer a admissão tinha de gastar
dinheiro com um professor. Naquele tempo pagou 1.500$00. A minha irmã
como professora só ganhava 600$00. Fez o curso e foi para mais um cursozito
em Coimbra para ser professor do ensino secundário. Mais tarde abriu a
Faculdade de Economia no Porto e ele arranjou um trabalho e formou-se.
O meu pai trabalhava muito mas nós nunca passámos necessidade, tanto que
naquele tempo pagavam-se 10$00 por mês para eu andar nas aulas da noite
secundárias.
Da I Guerra ainda tenho algumas recordações. Na Rua de Trás, que era por
detrás da de Latino Coelho, havia uma capela. No tempo da guerra dizia a
minha mãe que era proibido tocar sinos quando veio a peste. Ia-se para as
Goelas de Pau. Havia falta de pão mas o meu pai tinha uns amigos em
Valadares e ia lá com o meu irmão mais velho buscar broa. As outras pessoas
não teriam essa facilidade.
Os republicanos já tinham matado o Rei D. Carlos e o Príncipe. Depois mataram
o Sidónio Pais na Estação do Rossio. No dia 19 de Outubro de 1920, vão
buscar o Machado dos Santos mais o Carlos Ramalho. Mais outro governo.
Assassinaram-nos e foram-nos pôr à porta da morgue.
Eu já tinha dezasseis anitos quando o Afonso Costa, antes de ir embora,
mandou assaltar os armazéns de vidro que tínhamos na Rua de São João. Eu
lembro-me que o meu pai ainda comprou disso que foi lá roubado. Quando foi
dessa vez dos assaltos, na 1ª República, ouvia dizer que só uma intervenção
estrangeira, só uma ditadura, é que punha isto direito, até porque em Espanha
tinham a ditadura de Primo de Rivera.
Em Lisboa, era revoluções umas atrás das outras. Em 1926, ainda me lembro,
o meu pai tinha um fogo para uma festa em Gulpilhares e eu tive de lá ir
queimar os foguetes à missa. Nesse dia, 2 de Fevereiro, em Lisboa, dois
aventureiros que queriam fazer uma revolução, assaltaram o arsenal da
Marinha mas foram presos e condenados. Um ano antes, em 1925, já tinha
havido duas revoluções nos quartéis de Lisboa: a de 18 de Abril e a do
Cabeçadas, em Julho. Em 1928, quando o Salazar é chamado para Ministro das Finanças, fez o
Imposto de Salvação Pública. Toda a gente tinha de descontar 2% quando ia
receber.
Em 1930, pede ao povo um empréstimo de 200.000 contos para obras nos
portos e aquilo foi subscrito por toda a gente. Foi assim que começaram as
obras de Leixões.
Da II Guerra Mundial lembro-me, por exemplo, de um dia, quase ao fim da
tarde, ouvir uma girândola de muitos foguetes. O que era? Era um vapor inglês
dos raríssimos que vinham aqui ao Porto que, ao sair a Barra, foi atacado por
um avião alemão que vinha de Espanha certamente. Os vapores vinham aqui
ao Rio Douro buscar o volfrâmio para o fabrico de canhões.
As dificuldades eram tremendas. Por exemplo, os armazéns de vinhos que era,
e ainda é, o forte em Vila Nova de Gaia, não vendiam uma pipa de vinho a
ninguém e pagavam ao pessoal com três bilhas. Havia falta de géneros.
Quando vinha qualquer coisa era por ração. De fogos de artifício vendia-se
pouco e ainda para juntar veio o Bispo D. Agostinho de Lamego proibir as
vésperas das festas religiosas onde se queimava fogo de artifício. Devia ser em
1943 ou 1944. A juntar a isso, o Governo tinha uma lei na qual a gente para
comprar o nosso material, que nós precisávamos de clorato de potássio,
precisava duma licença especial, duma licença da polícia, era preciso ir a
Lisboa, depois vir, depois ir à farmácia militar buscar. Era tudo comissões
reguladoras. A certa altura foi para a farmácia militar um alferes que era o
chefe. Um patifório. Aquilo vinha dos países da Europa Ocidental, algumas até
vinham com a marca da Rússia, em barricas de 50 Kg. As barricas, que se
levantavam naquele hospital dos militares, traziam um saco de pano e esse
patifório mandava abri-las, tirar-lhes o saco de pano, depois roubava-lhes
quilos e obrigava as pessoas a pagar-lhe sete mil e quinhentos por cada
barrica. Ora, os fogueteiros traziam umas sacas para levar aquilo e não pagar
os 7$50. Um primo meu, chegou uma vez a casa e pesou-a. Em 50 Kg,
faltavam-lhe 8 Kg. Eles tinham a balança aferida, ele é que roubava. Os direitos
das pessoas e a pessoa tem de estar calada.
Andavam as pessoas, queriam trabalho e não tinham onde. Ninguém tinha
trabalho para dar.
Para eu me casar, o meu pai disse-me para ir falar com o senhorio duma ilha
de caseiros na Madalena, porque naquela altura, de vez em quando, os
caseiros saíam. Ao fim de dois anos, um caseiro atrasou-se-lhe nas rendas e
ele pô-lo fora. Mas não me disse nada. O senhorio andava-me a intrujar até
que me disse que tinha um terreno e que fizesse lá casa. Um ano depois é que
eu me casei e o meu pai fez duas casas gémeas que eram quase à beira da
dele. Agora a auto-estrada passa lá. Era uma casinha com quatro divisões.
Tinha uma saletazita de entrada, um corredor, depois tinha a cozinha e um
quarto de banho. Era uma casinha muito espaçosa. Mas não foi dada pelo meu
pai. Naquele tempo, eu pagava-lhe de renda 200$00 e só saí de lá por causa
da minha irmã que se pegou com a minha mulher. Fui alugar uma casa, um 1º
andar, à beira do infantário. Depois de casado ainda estive três ou quatro anos
na casa do meu pai.
A guerra que começou em Angola em 1961, nasceu com a Índia, com Goa.
Depois, o Salazar começou a mandar tropas e aqui, em Gaia, a Câmara fazia
uma recepção nas Devesas, mandava queimar foguetes à chegada que era
para os que vinham. Também vinham lá caixões com mortos.
Tive lá, na Guiné, o meu filho mais velho, que só veio em Setembro de 1974.
Quando lá chegou com os seus homens, morreram dois com uma granada.
Esteve dois anos e tal.
Actividade Profissional
Enquanto eu estudava, estava com o meu pai na oficina a aprender o ofício
mas eu era para ir para o comércio, para outra coisa. Tinha um irmão mais
velho do que eu cinco anos que tinha até habilidade mas não queria estar em
casa do pai, queria ir para a casa dos outros para ser mestre. Morreu aos 20 ou
21 anos num desastre com uma arma de fogo e eu tive de ficar no lugar dele.
Mas eu não gostava daquilo e aos 18 ou 20 anos pensei em ir para
Moçambique para uma missão como ajudante para dar lições de português. A
minha mãe disse que se eu fosse morria mais depressa e eu não fui. No ano
seguinte, com 52 anos, a minha mãe morreu. Tive de ficar com o meu pai
porque eu era o filho mais velho e tinha três irmãos que eram ainda menores. E
fiquei no fogo de artifício sempre a resmungar. Eu é que fui o encarregado de
educação deles, eu é que tratei deles. O meu pai nunca saiu, coitado,
trabalhava para ganhar. Só deixei de trabalhar com ele quando me casei e casei a minha irmã
professora. Tinha 36 anos. Eu não podia pensar em casar porque tinha aquelas
coisas da vida, do meu pai e dos meus irmãos.
Nunca fui empregado do meu pai por isso ele não me pagava. Eu ia ajudando e
ele dava-me qualquer coisa ao Domingo mas não era de ordenado. O meu pai
nunca foi meu patrão. Nunca me pagou ordenado. Só depois, quando me casei
e tinha responsabilidades de sustentar a mulher, é que tivemos de fazer
sociedade. Até aí era um criado que comia.
Quando o meu pai deixou de trabalhar tinha 79 anos e deixou-me a mim a
oficina, que era na Rua das Matas, porque o meu irmão esteve vinte e dois
anos em África e só veio para aqui trabalhar comigo em 1974 quando veio o 25 de Abril.
O meu irmão estava em Sá da Bandeira e eu e o meu pai mandávamos daqui
fogo e ele lá queimava. Ora, antes do 25 de Abril, eles tinham de pôr lá o
dinheiro para pagar a importação e os bancos só passado seis meses ou mais
é que nos pagavam.
Foi em 1961 quando fiquei sozinho. Já tinha 50 anos, já tinha trabalhado com o
meu pai mas eu não era para ficar, era para ir para o comércio, para outro
destino.
Uma vez fui à polícia política, à beira do Prado do Repouso, por causa de
selos. Tinha sido um homem que levava no comboio bombas de carnaval para
vender. Como não podia levar, abandonou o saco e a polícia queria saber
porque foi abandonado. Foi abandonado porque ele ia ser incomodado e assim
perdeu-o. Aquilo já estava perdido e ainda tinha de pagar uma multa.
Do 25 de Abril lembro-me que tinha aí um empregado, um moço, tratava-o
bem, tinha o que pedia, pagava-lhe o Abono antes dele vir e estava na Caixa,
mas foi ao Sindicato dos Químicos, lá na Boavista, queixar-se. O sindicato nem
tinha nada com aquilo porque os fogos de artifício eram regulados por uma
Portaria. Ora, eu pagava mais do que eles queriam que eu pagasse. Depois ele
teve juízo, veio pedir-me. Depois acabou, deu baixa na Caixa e esteve a fazer
coisas para o sindicato.
A oficina eram oito casas todas separadas. Em 1992 fecharam. Explodiu tudo.
Foi um prejuízo enorme porque até para segurar o pessoal nem todas as
companhias aceitam.
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