Silvestre Bastos de Oliveira
Dados pessoais, infância, escolaridade
, de
fitas de seda, na Rua da Lomba no Porto. Chamava-se Passamanarias "Mari".
A minha mãe foi sempre doméstica, mas como também tínhamos um comércio
de mercearia e adega, a minha mãe esteve com essa loja até que o meu pai
morreu em 1969. Depois aquilo ficou com a minha irmã. O meu pai sabia ler.
Julgo que tinha o exame do 2º grau. A minha mãe não sabia ler nem escrever.
Eu tenho o 2º grau, chamada 4ª classe do antigamente, e o meu irmão
também. Depois, frequentou uma escola qualquer e foi empregado de escritório
durante muitos anos. A minha irmã julgo que não completou o 2º grau.
Deixei a escola aos 11 anos porque eu não teria um interesse muito grande.
Naquele tempo, também não era muito hábito as pessoas estudarem, a não ser
aqueles que realmente tinham uma tendência muito forte para isso, e era
hábito os catraios começarem a trabalhar cedo para ajudar os pais. O meu
irmão também começou a trabalhar cedo e a minha irmã trabalhou sempre em
casa a ajudar a minha mãe.
Tive quatro filhos, três rapazes e uma rapariga. O meu filho mais velho tem o
10º, o mais novo também fez o 10º ou o 9º ano e a minha filha também. O
outro tem um curso de Cibernética tirado em Praga, Checoslováquia.
Da infância lembro-me que fazíamos os nossos próprios brinquedos. Com uma
latazinha, uma vela a arder e uma ventoinha, fazíamos uns barquinhos a vapor
e íamos para o ribeiro pôr o barco em movimento. Depois, eram aqueles jogos
habituais : o eixo, o pião e a pincha. Tirávamos os botões para jogar. Quando
perdíamos, voltávamos a tirar e quando ganhávamos voltávamos a coser os
botões nas calças ou no casaco.
Lembro-me também do tempo da guerra. Era assustador. Todos os dias
ouvíamos a BBC. O lugar onde morávamos teria talvez 150 ou 200 pessoas e
eu lembro-me das dificuldades que nós tínhamos em casa porque naquela
altura havia falta de tudo. Íamos para as filas das padarias ou das mercearias à
procura de açúcar e outros víveres. Lembro-me de açucarar o café com dois
rebuçados de açúcar mascavado. Eram dois rebuçadinhos com o pão e o café.
Às vezes, quando a sardinha era grande, era meia sardinhinha, um bocadinho
de pão de milho que se fazia em casa e a sopa. Era a refeição ao almoço e ao
jantar. Era tudo muito regrado porque havia pouco. Tínhamos um pequeno
quintal onde se punham umas couves e umas batatas mas não era tão grande
que desse para o ano inteiro. Para nós foi sofrível, tínhamos uma vida mais
desafogada. Os outros tinham menos que isso, não tinham nada. Passavam
fome.
Actividade Profissional
Quando fiz a 4ª classe entrei numa ourivesaria em Valbom. Miúdo, para aí com
11 anos. Trabalhei lá até aos 13 anos como ajudante. Fazia recados e fazia
uns serviços mais pesados que era a limpeza. A limpeza era manual porque
não havia motores eléctricos. Era puxar a chapa e o fio com que se faziam os
objectos. Era bastante pesado e difícil. Trabalhava oito ou nove horas.
Começávamos às oito da manhã e saíamos às seis. Ao Sábado à tarde e ao
Domingo não se trabalhava. Tínhamos uma hora e meia de pausa e ganhava
7$50 ou 10$00 por semana.
Como eu era um miúdo frágil e a saúde não era muita porque tinha uma hérnia
e mais qualquer coisa que me apareceu, a minha mãe, com receio que eu não
aguentasse os fumos, empregou-me na Casa Paulino, na Rua do Freixo, que
era uma loja de vender coisas miúdas : botões, fitas, tecidos. Estive lá até aos
15 anos.
Mas tinha-me ficado o bichinho da ourivesaria. Então, a minha mãe falou com
os donos da Perfeito e Companhia que era na Avenida Rodrigues de Freitas, no
Porto, e eles empregaram-me nas oficinas a ajudar a montar jóias grandes. O
nosso trabalho era laminar a chapa, fundir e laminar, depois estampar num
balancé manual. Quer dizer, preparávamos as peças para os oficiais da oficina
começarem a montar e a furar os trabalhos mais delicados. Aos 17, 18 anos, já
fazia os trabalhos todos. Não com a mesma precisão dos artistas mais velhos,
mas fazia. Ganhava 100$00 por semana, folgava ao Sábado à tarde e ao
Domingo e descontava para o Sindicato dos Ourives. A entidade patronal
descontava para a Caixa.
Aos 18 anos, ainda com o propósito de ser frágil a fumos, passei a ser
empregado de escritório dessa firma. Colaborava com uma secção de coisas
miúdas à base de pratas.
Aos 23 anos, quando casei, ganhava 1.350$00 por mês. Um ano depois
aparece o primeiro filho e verifico que o ordenado não dava. Disse aos patrões
para me arranjarem outra situação. Isso não aconteceu. Viajar era uma coisa
que me apaixonava e dava-me a possibilidade de ganhar muito melhor.
Respondi a um anúncio de jornal para vendedor da firma David Ferreira da Silva e Filhos. Davam-me dois contos de ordenado e uma comissão de mais
ou menos dois contos. Portanto, eu passava de 1.500$00 para 4.000$00.
Inicialmente, comecei a fazer só o Norte de Portugal. Um ano depois comecei a
fazer o país inteiro. O sindicato e a Caixa era a mesma porque o ramo
continuava a ser o de ourivesaria. Trabalhei lá dois anos e alguns meses. Por
essa altura, em 1963, a firma M. S. Monteiro, em Gondomar, precisava de
vendedor. Era uma firma de ourivesaria que só trabalhava com ouro. Exportava
muito e tinha muitos clientes em Portugal. Naquela altura, mesmo as pessoas
de parcas possibilidades como homens do mar e empregados da lavoura, todo
o dinheirinho que apanhavam investiam em ouro porque, quando fosse
necessário recorrer à troca ou à venda, não perdiam muito. Havia um
movimento grande em ouro. Faziam-se muitos cordões pesados, de meio quilo
e de um quilo, muitas voltas, muitos anéis.
Um vendedor de ouro era uma categoria acima e ganhava-se melhor.
Propõem-me então 3.000$00 de ordenado e uma comissão que seria também
de 3.000$00.
Trabalhei para eles até 1965. Mas o nosso País era pequenino e eu tinha o
sonho de fazer o mesmo trabalho no Brasil ou em África até porque a língua
era a mesma.
Passados 4 anos de ter rebentado o terrorismo em Angola, a coisa acalmou.
As pessoas começaram a ir, os soldados voltavam mas regressavam outra vez
a África, como aconteceu com um cunhado meu que levou com ele o meu
sogro. Angola era um dos meus projectos. Em Lisboa, depois de o ter deixado
no cais de embarque, regressei ao hotel e lá conheci um senhor que era
agente da Omega em Moçambique e em Angola e disse-lhe que, se um dia,
soubesse ou quisesse um empregado lá, que o meu objectivo era ir para
Angola. Quatro ou cinco meses depois recebo o convite e um bilhete de avião.
Falei com a minha mulher e a 5 de Maio de 1965 embarquei. Fui sózinho com o
propósito de trabalhar até ao fim do ano para ver se gostava e se me
aguentava porque viajar em Angola era muito duro e muito violento.
Fui ganhar 12.000$00, 6.000$00 de ordenado e outro tanto de comissão.
Naquela altura, em Portugal, um empregado de escritório ganhava 2.500$00,
um professor 2.300$00 mais ou menos, e um desenhador de móveis não
chegava a 2.500$00. Para além disso, a paridade do escudo em Angola e cá
era sensivelmente a mesma e as coisas eram mais baratas lá do que cá.
O primeiro mês que lá estive fiquei hospedado num hotel para me adaptar. A
partir daí, aluguei uma casa que, enquanto a minha família não chegasse, foi
ocupada pelo meu cunhado e família. Eu tinha um quartozinho para mim.
Fiz a minha primeira viagem com um empregado de côr. Ele não vendia.
Guardava o carro e os valores quando eu não estava e transportava as malas
com os artigos do carro para o cliente. Tínhamos uma lista com o nome das
terras e dos clientes, essencialmente portugueses, alguns estrangeiros e gente
de côr também, sobretudo relojoeiros e comerciantes. 25 dias depois ele
deixou-me porque eu estava apto.
Em cada viagem fazia 16.000 Km mais ou menos. Demoravam-se meses
porque em determinados sítios não havia asfalto, só capim e algumas vezes
mato, e era preciso ir em picada. Depois, havia muitos problemas com as
chuvas porque os rios enchiam e tínhamos de pôr o carro numa jangada para
atravessar. Era um dia quase para fazer perto de 500 Km. Chegávamos ao
local cheios de pó.
Fiquei lá até ao fim do ano e conforme o combinado vim passar o Natal e o fim
de ano com a família. 15 dias depois embarquei para Angola e em finais de
Janeiro de 1966 chegou a minha mulher, os filhos e a minha sogra. Nessa
altura o meu cunhado arranjou uma casa para ele.
Entre cada viagem, estava 15 dias no escritório a preparar o mostruário e a
reforçar as coisas que faltavam.
Como sempre usei gravata e camisa de manga comprida, acontecia que às
vezes chegava um cliente que não me conhecia e pensava que eu era o
patrão.
Trabalhei para eles durante seis anos, de 1965 a 1971. Era uma firma muito
boa só que o gerente e sócio, Sr. Fernando Seriot, era muito invejoso e muito
ciumento e criámos uma série de situações esquisitas. Todas as pessoas que
passaram por lá e tinham mais anos de casa do que ele, tratou de os mandar
embora. Era um indivíduo com um temperamento impossível. Escrevi ao meu
patrão que estava em Moçambique a dizer-lhe que me ia embora e porquê.
Vim embora. Não tinha propostas mas tinha na ideia que em Portugal arranjaria
algumas representações. No Porto, arranjei uma representação de artigos
decorativos, artigos em casquinha, candelabros e candeeiros, uma
representação da Ambar (artigos para escritório) e em Itália, uma
representação de postais ilustrados. Mas não cheguei a fazer nada disto
porque, apesar de Angola ser muito grande, toda a gente conhecia toda a
gente.
Então, um colega meu que tinha uma ourivesaria e representações de
relojoaria, ofereceu-me o lugar de vendedor. Escrevi para as representações
que havia arranjado, a dizer que desistia. Fui trabalhar com esse meu colega, o Mário Craveiro Campos, um tipo
muito ambicioso mas muito tratável e divertido.
Ao mesmo tempo tomei conta de uma ourivesaria em Malange porque, apesar
de estar a ganhar muito dinheiro com esse indivíduo, se por qualquer razão a
coisa corresse mal, eu já tinha hipóteses de me tornar independente. Convidei um relojoeiro para sócio
trabalhador porque ele não tinha dinheiro nenhum. Dei-lhe 50% da sociedade e
pus lá o meu filho mais velho e um empregado cabo-verdiano que sabia de
relojoaria e de consertos de ourivesaria. Continuei a viver em Luanda e
continuei a fazer umas viagens de 15 e 20 dias. Quando regressava passava
por Malange. Do Campos dificilmente lhe apanhava o dinheiro das comissões
porque ele acumulava-as. Por isso, eu procurava terminar a viagem na zona de
Malange para atender a minha loja que também era cliente do Campos.
Pegava nos objectos, deixava-os ficar na loja, fazia a factura e esse valor
abatia ao dinheiro das comissões que o Campos sempre retardava em pagar. Trabalhei
com ele dois anos e meio.
Após a Revolução de Abril, ainda estive lá uns tempos. A partir de 1972, a guerra civil
em Angola não nos afectou muito mas fazíamos algumas viagens em coluna
militar porque passávamos por zonas consideradas perigosas.
Em Junho desse ano, eu vim passar férias a Portugal e na loja, em Malange,
ficou o meu filho e o empregado. Os outros filhos, a minha mulher já os tinha
matriculado aqui na escola. Tive então conhecimento que a 16 ou 17 de Junho
houve um ataque do MPLA a Malange para expulsar de lá a UNITA, e a
UNITA, na debanda da cidade, pilhou todas as casas de valores. Na nossa loja
só deixaram uns relógios velhos para consertar. Esse ataque demorou até
14 ou 15 de Agosto. A cidade foi quase destruída e houve muitos mortos. Eu
queria comunicar com Malange mas não havia comunicações. Convenci-me
que o meu filho tinha morrido porque não havia notícias. Em casa ninguém
falava com ninguém. Até que, julgo que no dia 14 de Agosto, chegou uma carta
do meu filho a dizer que estava à espera de embarque. Curiosamente, no dia
em que chegou a carta também ele chegou a casa à noite. O meu filho e o
empregado safaram-se porque o ataque tinha sido à hora de almoço e eles não
estavam na loja. Tinham-se refugiado na sede de um clube. Entretanto,
formaram uma coluna civil e militar, andaram 16 dias pelo interior do mato até
chegarem a Nova Lisboa que era uma cidade que tinha aeroporto e,
eventualmente, ligação para Luanda ou para Portugal.
Perdi tudo. Contas no Banco, loja, dois terrenozinhos que tinha comprado...,
mas o filho apareceu. Apareceu o principal. O resto não contou.
Comecei do zero. Estive uns quatro ou cinco meses a pensar o que é que ia
fazer. A minha mulher foi sempre uma pessoa habituada a trabalhar muito.
Mesmo em Angola, que a gente vivia bem, ela trabalhou. Tinha a mania que
era modista. Quando chegou aqui começou a funcionar na mesma.
Comecei então a trabalhar para a Pratouro, fabricante de artigos de
ourivesaria em Gondomar. Propus-lhes não ter ordenado. Eu pagava as
despesas que tivesse mas queria uma comissão de 10% sobre tudo o que eu
vendesse. Ficou combinado. Ganhava bem. Por exemplo, em 15 ou 17 dias, eu
vendia mais ou menos 1 500 contos de artigo. Tinha 150 ou 170 contos de comissões.
Tirava-lhe 50 contos para despesas e ficava com 120 contos. Os outros
ganhavam 30 ou 18 contos, talvez por um certo comodismo, talvez pelo
sistema de trabalho que foi o mesmo durante muitos anos.
Viajei com essa firma até 1981 e em 1982 estabeleci-me com os meus filhos
aqui em Valbom. Fomos os quatro sócios até 1995 ou 1996. Hoje, apesar de
serem todos sócios, só um é que trabalha aqui. A minha filha dedica-se ao
comércio de ourivesaria, outro dedica-se ao fabrico e é revendedor e o mais
novo tem uma loja num centro comercial.
Eu ainda tenho o meu nome na sociedade mas não faço nada. Vou-me
entretendo a fazer qualquer coisa mas quero viver descansado.
Actividade Associativa
cumpra a promessa que me fez, isto é,
pediu-me para escrever um livro que a autarquia patrocinaria, isto já lá vão quase três anos. Vamos aguardar.
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