Primavera Freire da Silva
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me Primavera Freire da Silva, nasci a 4 de Fevereiro de 1913, em
Lordelo do Ouro. A minha mãe era Matilde de Jesus e o meu pai era Abel de
Jesus. O meu pai foi à guerra em 1914 e veio fugido porque já não aguentava
mais aquilo, chegou a casa, ficou tuberculoso e morreu uns meses depois, com
24 anos. Ele era serralheiro. A minha mãe era tecedeira na Fábrica dos
Ingleses.
Eu e a minha irmã fomos para a creche, enquanto a minha mãe ia trabalhar.
Levava o balde de vime à cabeça com o nosso almoço e ficávamos lá o dia
todo. À noite ia-nos buscar. O meu avô paterno, quando o meu pai faleceu,
tomou conta de mim aos 3 anos, porque a minha mãe tinha que cuidar da
minha avó. Depois a minha avó morreu e voltei para casa da minha mãe. O
meu avô continuou sempre a auxiliar a minha mãe, pagava a renda de casa e a
creche, e dava-nos de comer. Não era rico mas trabalhava há já muito tempo
na Fábrica dos Fósforos. Não queria que a minha mãe nos desse um padrasto,
por isso ajudava-nos.
Fui para uma Escola Evangélica. Fiz a 3ª classe e o professor deu-me uma
Bíblia de prenda, que ainda tenho guardada. Eu sou católica mas foi uma
prenda dos meus sacrifícios da escola. Quando vinha da escola ficava em
casa, com a minha avó, a fazer os deveres, e depois ia brincar com os
meninos.
Aos 11 anos, quando terminei a escola, fiquei em casa, mas trabalhava muito.
De manhã, no tempo da sardinha, pegava num baldezinho, ia a pé a
Matosinhos, ajudava os homens dos barcos a puxar os barcos e eles davam-
me um baú de sardinha. Já nos dava para 2, 3 dias. Os barcos chegavam à
doca velha e passavam as coisas para os "caícos". A gente ajudava esse barco
pequeno a vir para terra. Depois estavam as mulheres ali já à espera com as
canastras para ir vender e para as caldeiradas. Depois enchiam-nos o baú de
sardinha.
Actividade Profissional
Depois da escola fui para a costureira aprender pontinhos. Trabalhávamos de
graça, mas ainda estávamos a aprender. À tarde ia lá baixo à maré, vinham os
barcos "rabelos" com as pipas do vinho do Douro e nós íamos ajudar a carregar
os carros, e eles davam-nos um naco de broa e um bocado de toucinho. A
gente trazia sempre um saco de lenha, de rodolhos que ficavam da lenha, e
era com isso que se cozinhava lá em casa.
Eu andava quase sempre descalça, e outras vezes com umas soletas.
Também tínhamos sapatilhas, que era uma senhora que andava pelas lixeiras
a apanhar borrachas, lavava-as, depois cobria-as e vendia-as. As sapatilhas
eram feitas com borracha, as alpercatas tinham piche com um bocadinho de
areia fina. Nas alpercatas ela cortava o pano e depois fazia a molde com piche
e areia fina e depois forrava com uma palmilha de pano velho. A polícia não
nos fazia mal porque eles sabiam que a gente não tinha dinheiro para comer,
quanto mais para calçado. Havia só um, o cabo "magrinho" que era um
demónio, não nos deixava. Pedíamos aos sapateiros para nos fazerem umas
soletas, que eram uns paus com uns fios à volta do pé e quando o víamos
calçávamos aquilo.
Depois, quando já tinha 15 ou 16 anos, através de uma prima, fui trabalhar
para uma casa particular de ligas e suspensórios de homem. Era da casa do
João Duarte, que montou entretanto uma fábrica em S. Brás, de meias
grossas. Depois lembrou-se de ir para o Amial, onde montou a Fábrica de
Malhas do Amial. Eu fui para lá ajudar os alemães a levantarem as máquinas e
tudo. As primeiras meias que se fizeram lá era a 60$ o par. Fiquei lá a trabalhar
e nunca mais mudei, até que me reformei.
Eu estava numa máquina pequenina a enfiar aquelas malhinhas das meias,
mas depois acabaram com essa produção porque era muito cara. Começámos
então a fazer cuecas de senhora, camisolas de dentro para homem...
Era um bom trabalho, havia muitos pedidos para entrar na fábrica. Quem lá
entrasse nunca mais saía. Os patrões eram bons, os que dirigiam eram bons,
compreensivos e educados, e todos religiosos. Havia sempre dinheiro para nos
pagar, mesmo as horas extra, e quando tínhamos férias recebíamos sempre
tudo direitinho. Durante o tempo da guerra, a fábrica dava-nos leite e um pão
de manhã, sopa ao meio-dia, leite e pão também à tarde. Quando a guerra
acabou eles mantiveram essa alimentação. Pela Páscoa davam-nos uma
lembrança de entre a produção da fábrica e um cartãozinho para ir à loja
comprar alguma coisa. Pelo Natal era o bacalhau e as batatas e algum
dinheiro.
Eu entrava a trabalhar às 8 da manhã, quando não entrava às 7, e às vezes
saía à meia-noite. Quando chovia podíamos trocar de roupa e deixar a outra a
secar, depois até nos deram umas batas. Era também uma fábrica de limpeza,
toda a gente tinha de andar muito limpa e apresentável. Trabalhávamos de 2ª a
sábado ao meio-dia. Depois mais tarde começámos a não trabalhar ao sábado
o dia todo.
Entretanto eu adoeci, com tuberculose, fiquei a deitar sangue pela boca e não
pude trabalhar durante 2 anos. Muitos dos meus primos morreram de
tuberculose, só fiquei eu, a minha irmã e duas primas. Fui para a Assistência a
Tuberculosos, na Carvalhosa, e queriam-me internar. Mas eu não quis, fui
antes para Cête, a terra de uma colega minha e fiquei lá a descansar durante
uns tempos. O tratamento era muito caro, era o Remifon e a Estreptomicina,
mas eram todos pagos pela fábrica e lá, até tinha um médico que ia ver os
doentes a casa. Aliás, enquanto eu estive doente, a Fábrica do Amial nunca
deixou de me pagar o ordenado.
Os homens trabalhavam nas máquinas e as mulheres ajudavam, naqueles
trabalhos de apanhar as malhinhas, de ver os acabamentos, de passar a ferro.
Naquela fábrica entravam os cones de fio e saíam as peças. Eu tinha 6
raparigas a meu cargo, malandras que se fartavam. Eu cortava elástico para
aplicar nas cuecas e além disso tinha o ferro.
A Fábrica do Amial não tinha uma crech porque não tinha terreno para isso. O
nosso patrão, João Duarte, também era o dono da "Barcelense, em Barcelos,
e lá tinha uma creche completa. As mulheres então, cá no Porto, punham as
crianças em amas, por conta da fábrica. Lá para as 10 horas da manhã,
podiam sair para ir dar o peito às crianças. Quando as trabalhadoras iam para
a Maternidade eram sempre muito bem tratadas, porque tinham lá a filha do
nosso patrão, que era médica.
Os feriados guardavam-se todos, não se trabalhava: o São João, o São José, por
exemplo, porque eles eram muito católicos. Mas esses dias eram sempre
pagos, não se descontavam.
Quando cheguei aos 65 anos o meu sobrinho escreveu uma carta por mim ao
Sr. Eng. João Duarte a despedir-me. Eles queriam que eu, mesmo assim,
continuasse lá, mas eu não quis. Já eram muitos anos.
Eu comecei a passear e a conhecer alguma coisa depois que me reformei e
que vim para o Centro de Dia de Lordelo. Nós vamos dando uns passeios,
temos este convívio, temos umas certas regalias.
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