Maria Alice Vieira Gomes
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me Maria Alice Vieira Gomes, e nasci a 29 de Julho de 1943, em Braga
Venho de uma família muito pobre. A minha mãe trabalhava na lavoura, às
tardes, para pessoas de fora. Não tínhamos terras. Era trabalho manual, com
sacholas e ancinhos, e só ganhava 4$50 por tarde. O meu pai também
ganhava pouco. Era lavador de carros eléctricos nos Serviços Municipalizados de Braga. Entrava às 14 horas e saía à 1h da manhã. Nenhum deles sabia ler
ou escrever.
Éramos seis filhos, quatro raparigas e dois rapazes. Uma das meninas morreu
cedo. Quando chegávamos da escola, ficávamos entregues a nós próprios.
Íamos apanhar lenha ao monte - cozinhávamos só a lenha - e os rapazes
andavam com outros. Eu, a mais velha, tomava conta dos meus irmãos, mas
éramos tão chegadinhos que o que eu precisava era que tomassem conta de
mim.
Os meus pais tiveram pouca sorte. Todas as filhas sofrem dos olhos. Ceguei
aos 14 anos, com glaucoma hereditário, depois cegou uma irmã aos 16 anos.
Mais tarde, cegou a mais nova, aos 33. Os nossos pais andaram de médico
para médico e a assistência nesse tempo não era favorável. Para nos
tratarmos tivemos de pedir na Junta de Freguesia um atestado de pobreza,
tivemos de provar que éramos pobres.
Eu ouvia dizer que o Instituto de Assistência à Família, era assim que se
chamava o Centro Regional de Segurança Social, oferecia coisas aos pobres
no Natal. A nós nunca nos davam nada. Um dia, tinha eu 22 anos, perguntei à
minha mãe por que razão não nos ajudavam. Ela não sabia. Decidi, então, ir
com a minha irmã mais pequena - mais nova do que eu 9 anos - ao Instituto de
Assistência à Família. A assistente social não nos ofereceu nada, mas deu-nos
tudo, afinal! Foi ela quem conseguiu que viéssemos para o Centro de Reabilitação da Granja.
Perguntou-nos se queríamos trabalhar numa fábrica. Dissemos que sim, mas
eu, com franqueza, não estava nada convencida. Um irmão nosso, pequenino,
já andava numa fábrica de malas, ganhava qualquer coisita.
Só podíamos vir para a Granja com autorização do nosso pai, que nessa altura
nos disse: "Minhas filhas, há uma coisa que quero que saibam. Não vos quero
fora, não estou a pôr-vos fora de casa, mas vós quereis ir, e eu faço tudo o que
vocês queiram". Isto marcou-me profundamente. A assistente social mostrou-
lhe, então, fotografias do Centro de Reabilitação com cegos a trabalhar com
máquinas. Mas o meu pai, quando nos ia levar ao Centro de Reabilitação,
vinha sempre a chorar. Fui a primeira a ir para o Centro de Reabilitação. A minha irmã que cegou aos
16 anos não pôde acompanhar-me porque os médicos lhe descobriram um
problema cardíaco. Esteve internada no Hospital de S. João. Quando
finalmente foi ao Centro de Reabilitação, que entretanto fechou, a directora
arranjou-lhe emprego em casa de um médico no Monte dos Burgos (Porto). A
outra irmã esteve primeiro em Lisboa, depois numa firma no Porto como
telefonista. Veio a cegar e a empresa também faliu.
Actividade Profissional
Comecei aos 25 anos a trabalhar numa fábrica no Porto, a Companhia Fabril de Louça Esmaltada, que fazia os fogões Leão. Fui ganhar 26$40 por dia, com
um horário de nove horas e meia. Foi a assistente social de Braga quem
explicou à directora do Centro de Reabilitação que esta tinha de nos arranjar
emprego no Porto, porque em Braga havia pouca indústria. O Centro
hospedou-me num lar da Associação Católica Internacional (na Rua da Constituição) ao serviço da
Juventude Feminina. A fábrica Leão ficava perto do
lar.
No lar foram sempre muito minhas amigas. Pagávamos uma pensão mediante
o ordenado. Havia uma mensalidade base, mas algumas pagavam menos.
Estavam lá muitas funcionárias da Previdência, depois de desmanteladas as
Caixas da Indústria Hoteleira, Têxtil e Metalúrgica, que veio de Lisboa para o
Porto.
Antes de mim estivera nos fogões Leão outra senhora cega, também colocada
pelo Centro de Reabilitação da Granja. Nesse Centro as raparigas faziam o
trabalho dos rapazes e estes os das raparigas. Eles lavavam roupa, passavam
a ferro, nós trabalhávamos com máquinas. Diziam-nos: "Se vocês conseguirem
trabalhar aqui, também conseguem trabalhar numa empresa". Trabalhei nos fogões Leão apenas 15 anos, porque a fábrica faliu. A seguir à
falência, reformei-me. Gostei muito de lá estar. Montava peças para fogões. A
princípio, era tudo manual: apertar parafusos, apertar injectores para cortar o
gás, meter molas de aço. Fiz bolhas nas palmas das mãos. Um trabalho duro,
mas de que gostava. Depois, com o andar dos anos, já havia máquinas
pneumáticas para apertar parafusos e injectores.
Até ao 25 de Abril não tínhamos pausas para descansar, só interrompíamos
para o almoço. E, numa determinada fase, não almoçávamos sempre à mesma
hora nem o horário de trabalho era sempre o mesmo, porque a Fábrica Leão
tinha um contrato com a EDP que lhe fornecia energia mais barata a certas
horas. Assim, entre Dezembro e Março, creio, almoçávamos às 11 horas,
retomávamos o trabalho às 12,30h e só terminávamos às 18,30. Isso acabou
com o 25 de Abril. Os sindicatos não achavam justo trabalharmos mais de
cinco horas seguidas.
Actividade Sindical
Nós, lá na fábrica, fizemos greve antes do 25 de Abril, em Março de 1974.
Devemos ter sido dos poucos, e bons! Considerámos uma afronta terem-nos
dado de aumento 20 centavos por hora. Fizemos greve de braços caídos -
ficávamos no posto, sentados ou de pé, no nosso lugar, mas não
trabalhávamos. Quando o engenheiro passava por nós e nos perguntava a
razão de não trabalharmos, dizíamos que queríamos mais aumento. No dia
seguinte encontrámos a fábrica fechada. Havia lá um papel a informar-nos que
teríamos de pedir desculpa aos patrões, dizer que fora um acto irreflectido e
que nunca mais faríamos greve. Quem assinasse esse papel entrava na
fábrica. Trabalhavam lá mais de 500 pessoas. Poucos o assinaram.
Ficámos à porta, sempre a andar de um lado para o outro em frente aos
portões da fábrica, porque, naquele tempo, pessoas paradas em grupo eram
logo consideradas revolucionárias. Estava lá a polícia com pingalis e, dias
depois, apareceu a PIDE. Chamaram um colega à PIDE como sendo o
cabecilha da greve. Essa pessoa negou tudo.
O Sindicato da Indústria Metalúrgica Metalo-Mecânica do Porto apoiou-nos,
mandou um telegrama para o Governo, para o Sindicato dos Bancários do Sul.
Fez ainda uma colecta junto de empresas metalúrgicas para nos completar os
dias de salário que tínhamos perdido na greve. Cinco ou seis dias depois
fomos outra vez trabalhar.
Depois do 25 de Abril houve muitas manifestações para serem assinados
Contratos Colectivos de Trabalho. Os metalúrgicos eram os que mais poderio
tinham. A princípio fiz algumas greves, mas depois começaram a meter
politiquices.
Sempre fui uma pessoa com bastante independência. Às vezes fazia greve e ia
para casa. Nunca fui a nenhuma manifestação. Nem no 1º. de Maio.
Actividade Associativa
Sou sócia da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal. Sou membro
activo, faço parte dos corpos sociais. Tenho actividades na Associação e no
Centro de Dia. Vou também para o Centro de Dia de Santa Zita, faço malha e
renda e, ao sábado, natação. Estou sempre ocupada, acho que o dia é
pequeno. Ando sempre de autocarro porque tenho muito medo dos buracos
nas ruas. Tenho passe, saio de um, entro noutro.
Moro no lar do Centro de Dia. Temos um quarto e casa de banho para cada
pessoa. Quis ir para uma casa da Câmara, mas a Dra. Maria José Azevedo, na
altura, disse-me: "Vai melhor para ali, não quero que vá para uma casa da
Câmara, porque as pessoas são muito complicadas". Fui lá depois dizer-lhe
que ela tinha razão. Há 12 anos existiam aqui, no Porto, três associações de cegos do Norte de
Portugal. Achou-se melhor unir as três associações, pois assim seria mais fácil
conseguir direitos junto das instâncias governamentais.
Mas continua a ser muito difícil, para os cegos, arranjarem trabalho. Muitas
vezes, os mais novos, depois de fazerem um curso profissional, fazem um
estágio numa empresa, de nove meses ou um ano, a ganhar o salário mínimo.
As empresas não têm custos com esses estágios, mas depois não os
empregam. Só querem estagiários.
Os livros em braille também ainda são muito caros: custa cada volume 350$00,
e há obras que levam 20 e 30 livros.
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