António Américo da Silva Leal
Dados pessoais, infância, escolaridade
Serviço Militar
Fui para Angola como militar já depois do 25 de Abril e lá estive até 1975.
Assentei praça em Leiria, passei pela Escola Prática de Cavalaria de Santarém, pela
Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas, por Espinho,
onde fui furriel de artilharia, dei uma recruta, e dali segui para Évora. Parti
para Angola em Maio de 1974. Quando se deu o 25 de Abril estava em Évora,
a última região militar a render-se.
Há coisas que marcam e ainda me lembro de ouvir a Rádio Voz de Angola, um
ou dois dias depois de chegarmos a Luanda, noticiar: "Chegou mais um pelotão
de assassinos". Mas, passado um ou dois meses, quando já estávamos em
Zala, era com prazer que ouvíamos a mesma rádio dizer que afinal éramos
um "batalhão da paz".
Foi possível estabelecermos contactos com os movimentos de libertação da
zona, conviver com eles no nosso aquartelamento, onde almoçavam ou
jantavam connosco. Fomos, assim, criando as condições para que criasse
uma paz verdadeira.
No entanto, no período final houve uma experiência que me marcou muito - foi
quando se iniciou uma guerra civil entre os movimentos de libertação.
Andámos a empilhar mortos como se empilham toros de madeira. Era a
maneira de diminuir o risco de doenças, face a tão grande mortandade. É uma
fase da minha vida que me marcou muito. Quando se vê o que se passa no
mundo, isso vem-me à memória.
Actividade Profissional
Como não acabei o 3º ano, comecei a trabalhar aos 13 anos, o que cedo me
fez ver certas coisas. Era um trabalho custoso: forrar condutas com lã de vidro
e colocá-las em vivendas, na zona da Foz.
Aos 15 anos, como era filho de ferroviário e tinha o ciclo preparatório, surgiu-
me a possibilidade de entrar na escola de aprendizes da CP, uma escola que
infelizmente acabou há dez anos, quando a CP formou uma parceria com os
STCP e com o Metro e criaram a FERNAVE, uma empresa ligada à formação.
A CP dava cartas na formação profissional. Muitos dos trabalhadores formados
nas escolas de aprendizes da CP vieram a transitar para empresas do ramo
com grande peso no mercado nacional, como a Siderurgia Nacional ou a
Lisnave. Pelo contrário, a FERNAVE também forma jovens, mas uma grande
parte deles não tem colocação na CP e alguns têm muita dificuldade em
encontrar colocação no mercado de trabalho.
No tempo da escola de aprendizes da CP havia dois anos de aprendizagem.
No 2º ano, além da teoria, como Desenho de Máquinas, Geografia ou
Tecnologia, tínhamos aulas práticas, conforme a especialidade profissional:
serralheiro de máquinas e ferramentas, soldador, torneiro. No 2º ano comecei a
aprender a especialidade de serralheiro de máquinas e ferramentas. Essa foi
sempre a minha profissão.
Quando entrei para a CP, em 1967, as oficinas eram em Campanhã e ainda
me lembro bem da primeira visão que tive daquilo - acabara de entrar num
quartel. Só podíamos sair das oficinas no termo do horário de trabalho ou com
autorização assinada pelo chefe a explicar que íamos ao posto médico ou outro
motivo qualquer. Só assim os seguranças da CP nos deixavam sair.
Além disso, tive de lidar, aos 15 anos, com homens vítimas da dureza do
trabalho e de toda uma série de agruras da vida. Refiro-me a uma época em
que os comboios ainda eram a vapor. Eu próprio, na minha secção,
trabalhei na modernização da CP, na transformação do vapor para o sistema
eléctrico. Tínhamos uma secção de reparação das máquinas onde fizemos
muitas dessas alterações. Ficou-me na retina aquela
disciplina e aquela dureza de trabalho.
No meu grupo de trabalho éramos 20 aprendizes. O nosso vencimento era da
ordem dos 700 escudos mensais, mais um passe da CP de residência - para o
nosso percurso diário - e um passe de fim-de-semana para a rede geral.
Notava-se nesse tempo um descontentamento e revolta face a toda uma série
de situações. Por exemplo, não tendo eu nada contra uma certa
hierarquização, naquela altura, por caricato que pareça, havia um prémio de
produtividade que era menor para os homens que estavam na produção do que
o do chefe que se limitara a distribuir a tarefa que fora efectivamente feita. O
chefe não metia a mão na massa e usufruía mais do que o próprio operário.
Coisas como esta levaram a descontentamentos e a alguma reacção.
O meu pai dizia-me "Olha que pode ser pouco, mas é certo, e é um emprego
estável". Mas, a mim, o dinheiro não me dizia tudo e, naturalmente,
discutíamos algumas situações. Como o caso de um engenheiro do 1º. grupo
oficinal de Campanhã a quem os mais antigos chamavam "Coração de Ferro",
por ser extremamente frio e duro.
Actividade Sindical
Em 1968 começaram a notar-se alguns desenvolvimentos na reacção dos
ferroviários. Naquela altura havia sindicatos, mas - não diria que fosse uma
capitulação perante a entidade patronal - eram sindicatos a quem as entidades
patronais diziam: "Meus amigos, o aumento é x ou não há aumento". E éramos
confrontados com dirigentes sindicais que, do magro salário que os
trabalhadores usufruíam, ainda lhes pediam que dessem dinheiro para comprar
uma caneta em ouro ou em prata, por exemplo, para oferecer ao administrador,
porque este tinha sido muito benévolo e dera um aumento aos ferroviários.
É evidente que situações como estas criavam resistências. Em finais de
Dezembro de 1968, princípios de 1969, foram recolhidas 13 mil assinaturas de
contestação à forma como se porcessavam os aumentos salariais, e propunham-se aumentos
iguais para todos na ordem dos 1.000 escudos e uma série de regalias no
campo social. O regime geral da Segurança Social só aparece em 1969 e, até
aí, os ferroviários tinham apenas o regime especial da CP - ainda sou do tempo
em que não havia Segurança Social e, portanto, tínhamos de pagar as
consultas médicas, e em que os trabalhadores pertencentes Caixa de 27
tinham direito a 10% do seu venncimento para a renda da casa.
Esse conjunto de reivindicações veio a culminar, no início de 1969, na greve da braçadeira preta. Pormos todos uma braçadeira preta foi a
melhor forma de chamarmos a atenção dos utentes dos comboios. "Andam de
braçadeira preta, o que se passa?". Era uma maneira de entabular conversa e
podermos explicar as razões da nossa luta. A polícia política prendeu os que
estavam à frente do movimento, mas o certo é que o Governo teve de ceder. A minha grande entrada no sindicalismo deu-se em 1976, depois de ter feito o
serviço militar em Angola.
Em 1976, como a Constituição da República Portuguesa previa a criação de Comissões de Trabalhadores, criámos uma Comissão de Trabalhadores no nosso grupo
oficinal. Nessa altura já eu tinha uma opção político-partidária e, naturalmente,
apoio e suporte em toda uma série de iniciativas que fui levando à prática. Essa
opção política foi-se formando ao longo da minha vida, tanto no trabalho como
através de conversas com o meu pai. Recordo-me, por exemplo, de o meu
falecido pai ouvir à noite a Rádio Voz da Argélia. Eu era pequeno e ele avisava-
me: "Estavas ali, ouviste alguma coisa? Não digas nada a ninguém".
A primeira luta em que participei no meu grupo oficinal na CP depois do 25 de Abril teve a ver com os preços na cantina. Em 1976 pagávamos por refeição
7$50, mas, de um momento para o outro, aumentaram para 20$00. Isto para um
salário de mil e poucos escudos. Eu e outros camaradas conseguimos
desenvolver uma luta de cerca de 15 dias, recusando pura e simplesmente
tomar a refeição na cantina. O pessoal começou a levar sandes, apesar da
orientação dos administradores para se melhorar as refeições: "À segunda-
feira, bife, à terça cozido, à quarta rojões, ...". O pessoal resistiu. O que levou,
mais tarde, à criação de um subsídio de refeição. Não ganhámos a luta pela
redução do preço, mas ganhámos a luta de outra forma. Além de pertencer à Comissão de Trabalhadores, fui também delegado
sindical. Essa aprendizagem, essa vivência, levou a que fosse escolhido pelos
meus camaradas, em 1979, para a direcção do Sindicato dos Ferroviários do Norte. E, por decisão da direcção, comecei também a fazer parte das
Comissões Sindicais Negociadoras da CP.
Foi uma mudança radical na minha vida, em todos os aspectos. Para quem
tinha uma vida mais ou menos estabilizada em termos de horário de trabalho,
distava 40 quilómetros do local de trabalho e tinha alguma inexperiência numa
série de situações, essa foi a época das grandes estreias e das noitadas em
Lisboa. Entre 1976 e 1981 conseguimos obter um regulamento de carreiras,
férias, subsídio de férias, 13º mês, subsídio de refeição e um prémio de produtividade que nada
tinha a ver com o que antes existia. Os picos da luta dos ferroviários ocorreram entre finais dos anos 70 e meados
de 1980. Recordo-me bem de algumas datas, como é o caso do protocolo
negociado em 25 de Abril de 1986 e que repôs o equilíbrio escalonar em
termos de regulamento de carreiras. Uma negociação de tal dureza que só foi
possível vencer com a retaguarda de uma série de greves. Essa luta deu-se
numa fase em que o poder político e, por seu intermédio, as entidades
patronais apostavam numa grande divisão dos trabalhadores. No próprio sector
ferroviário começaram a aparecer um número significativo de sindicatos ditos
de classe. A entidade patronal começou a dar incentivos a esses sindicatos, na
perspectiva de que aparecessem mais sindicatos. Tivemos de desenvolver
greves e grandes concentrações junto dos ministérios, com a participação de cerca de 10.000
trabalhadores. Organizávamos comboios especiais do Porto para Lisboa para
podermos transportar os trabalhadores.
Esse protocolo, que alterou uma série de desequilíbrios entretanto criados entre as diversas categorias profissionais,
nomeadamente em relação aos maquinistas, só foi assinado ao fim de 38 dias
de greve.
É evidente que quando falo em 38 dias de greve não me refiro a períodos
completos de trabalho. Organizámo-nos de forma a desgastar a entidade
patronal sem desgastar os trabalhadores na luta. Fomos encontrando
esquemas de agravamento: começámos por duas horas de greve, depois
passámos para duas horas e meia, três... Houve da nossa parte a perspicácia
e a flexibilidade suficientes para escolher as melhores horas. Por exemplo, não
tínhamos dúvida de que o final do turno, porque assim poderiam ir mais cedo
para casa, era a melhor hora de greve para o pessoal administrativo e para os operários de via, os que
trabalham nas infra-estruturas da linha. Mas o mesmo esquema não era
aplicável ao pessoal ligado aos comboios, pois esses não poderiam parar o
comboio em plena linha para fazer duas ou três horas de greve. Neste caso o
que se coadunava era o comboio não chegar a partir. Nos sectores de
manutenção e reparação, apontávamos a paralisação para as horas de maior
aperto. Tudo isto combinado criou o caos na circulação, o que levou,
naturalmente, à assinatura do protocolo. Os ferroviários têm uma história riquíssimia de luta. Na minha opinião, há uma
explicação para os picos de luta no sector ferroviário terem ocorrido entre finais
de 70/ meados de 80: trata-se de uma geração que sentiu na carne as agruras
da vida, do que era a CP. Do que era trabalhar de sol a sol e sem direitos.
Esses trabalhadores foram forjados na luta e, com o 25 de Abril, conseguem
conquistas, o que lhes deu ainda mais ânimo. Essa geração são hoje os
reformados e os pré-reformados.
Para falar da CP, que agora está toda espartilhada, tenho de falar em três
gerações: a que me antecedeu e que passou por muito mais do que eu; a minha
geração, que é a que ainda hoje está com mais força, porque passámos um
bocado e sabemos o que nos custou conquistar direitos e regalias; e a geração
actual, que não conhece a nossa história e que entra no mercado de trabalho
convencida de que o problema é o vencimento ao fim do mês. "Estou aqui para
ganhar o meu ao fim do mês, tenho de pagar a prestação do carro, tenho de
pagar a prestação da casa...". Este é o pessoal que entrou para a CP a partir
de 1987 e que está na casa dos 30/35 anos.
Essa gente tem dificuldade em perceber algumas coisas. Quando chegamos à
beira deles e lhes dizemos "Ó pá, tu hoje tens subsídio de refeição, tens férias,
tens subsídio de férias, tens 13º mês, ganhas pelo trabalho nocturno", é
evidente que eles não vêem colegas doutros empregos terem certas regalias
que os ferroviários conseguiram com a sua luta. Reconheço que há trabalho
em profundidade a fazer com esta nova geração, mas não me sinto
descontente com ela. Actualmente estamos extremamente preocupados com o espartilhar da CP
numa série de empresas e com a modernização do sector. Com toda uma série
de alterações, como a electrificação das linhas e o controlo automático, um
número significativo de trabalhadores na casa dos 55 anos, 56, 57 mostram-se
disponíveis para rescindir contratos a troco de algum dinheiro. Outros
reformam-se. Há, portanto, uma redução significativa de postos de trabalho e
tememos que essa redução venha a apanhar camadas mais jovens.
A modernização também afecta as mulheres que trabalham na CP, a maior
parte delas guardas de passagem de nível. Com as passagens de nível
automatizadas ou com os viadutos, essas guardas deixam de ser necessárias.
É preciso reconverter essas senhoras para outras carreiras profissionais. Nós
temos propostas, o problema é eles (administradores) estarem sensíveis.
Na CP chegámos a ser 28.000 trabalhadores. Hoje, as empresas do grupo têm
apenas 15.000. A CP, essa só tem 6.000. Mas, mesmo com a redução de
pessoal e o elevado número de sindicatos do sector - actualmente são 28 -
ainda mantemos 6.500 trabalhadores do grupo sindicalizados no nosso
sindicato, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Sector Ferroviário.
Até 1999 tínhamos a Federação e três sindicatos, o do Norte, Centro e Sul. A
partir de 2000, a Federação e esses três sindicatos fundiram-se e criámos o
Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Sector Ferroviário, que tem cinco
direcções regionais: Porto, Coimbra, Entroncamento, Lisboa e Barreiro. A
Federação já não existe mas o grosso dos trabalhadores ainda diz "sou sócio
da Federação". Quando na CP havia 28.000 trabalhadores, chegámos a ter 20.000 associados.
Não tenho dúvida alguma de que certas medidas do Governo e da própria
empresa com vista ao desmembramento da CP visavam também uma grande
machadada no movimento sindical. Num primeiro estudo encomendado aos
canadianos pelo Governo Português, na altura do PS e em que o ministro da
tutela era o Arquitecto Rosado Correia, os canadianos diziam que o sector
ferroviário tinha trabalhadores a mais - na perspectiva deles - e linhas capazes
de não se justificarem, mas tinha uma estrutura sindical forte. Portanto, as
coisas não estão desligadas.
Apesar de serem os homens que sempre estiveram ligados à estrutura sindical
os que estão agora a reformar-se ou a rescindir contratos, temos conseguido
manter um número significativo de sindicalizados. E grande parte dos pré-
reformados mantém-se sindicalizada. Preocupa-nos a forma como cada vez mais se deita para o caixote do lixo uma
série de direitos dos trabalhadores. Nós negociámos as 8 horas diárias de
trabalho, mas há medidas de excepção que permitem à entidade patronal
recorrer a trabalho extraordinário. Que tempo sobra para a família quando se
põe uma mulher a trabalhar 12 horas por dia? Os homens do poder é que
gerem os tempos dos trabalhadores, estes agora não têm condições para
serem eles a gerir o seu tempo. Mas não acredito que isto seja eterno, há-de
chegar o momento para dar um abanão. Tenho fé que ainda seja para o meu
tempo.
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