Maria Rosa Oliveira
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me Maria Rosa de Oliveira e nasci em 1925, em Labruge, Vila do Conde.
Comecei a trabalhar numa fábrica aos 14 anos, mas desde os cinco que ajudava a
minha mãe. Ela ficou viúva muito nova, com três filhos pequeninos. Teve sete
filhos, quatro morreram em pequenos. Naquele tempo não havia vacinas, nem
sequer contra o sarampo. Eu, como era a mais nova, já fui vacinada.
O meu pai, pescador, foi para o Brasil ganhar a vida tinha eu uns oito meses. Não
teve sorte, morreu lá afogado.
A minha mãe, viúva, fez de tudo para sustentar os filhos. Trabalhou à jorna em
casa de lavradores, andou a partir cascalho, a vender sardinha, fruta, hortaliça. E
ainda fazia colchas em croché. Eram para guardar, mas acabava por vendê-las
porque o dinheiro fazia-lhe jeito. A nossa casa era muito pobre: uma cozinha em terra, uma salinha com soalho de
madeira e um quartinho sem janelas onde dormia o meu irmão. Quando casou
continuou a viver lá, com a mulher, durante algum tempo. Não havia quarto de
banho, a sanita era uma tábua com um buraco no meio, no quintal. Lavávamo-nos
em bacias e íamos pedir água aos outros, pois na nossa rua não havia um único
poço. A roupa era lavada no rio e nós, crianças, fazíamos também essa tarefa.
Trabalhinho desde pequenas. Tínhamos um terreno onde a minha mãe cultivava batatas e hortaliças para todo o
ano. Tantas vezes comemos apenas batatas com couves! E, no Inverno, com
aquela neve, que frio a gente passava a apanhar grelos. A minha mãe apanhava
uma camioneta às 3 horas da manhã que a trazia ao Mercado do Anjo, no Porto,
onde vendia a hortaliça.
Além disso, quando não havia peixe em Angeiras, vinha a Matosinhos comprar
peixe para vender.
Eu também andei com ela a vender sardinha. A nossa vida em pequenos era
vender peixe, apanhar grelos, lenha para o fogão, ir ao mar buscar sargaço para
depois o vendermos aos lavradores - para adubo - ou às farmácias, para
medicamentos. Andei na Escola Primária de Labruge. Íamos por carreiros cheios de água, com os
pés molhados, porque só usávamos socas - ou chancas -, não havia dinheiro para
sapatos. E era a nossa mãe quem nos fazia as meias, à luz da candeia.
A minha mãe tinha muito desgosto de não saber ler, precisou que lhe lessem as
cartas do marido. "Ao menos para saberes ler e escrever uma carta e não dares a
saber a vossa vida a ninguém, ides para a escola", dizia ela aos filhos. Mandou as
duas filhas à escola, o nosso irmão, que era o mais velho, não quis, era malandro.
Ainda foi à escola mas não chegou a fazer a 4ª classe.
Eu lia muito bem e tinha uma escrita perfeita. A professora mandava-me ler
sempre que uma visita ia à escola. Mas só fiz o exame de 3ª classe quando já era
adulta e trabalhava na Fábrica dos Carrinhos. Foi quando o Craveiro Lopes entrou
para o Governo e fez sair uma lei a obrigar todos os trabalhadores até aos 35
anos a terem pelo menos a 3ª classe, se não, eram despedidos. Em 1939, quando veio a II Guerra Mundial, abriram muitas fábricas de conserva
para se enviarem sardinhas para os militares e a minha mãe foi então trabalhar
para a Conserveira Portuguesa, em Matosinhos. Levou com ela a minha irmã.
Durante a guerra os alimentos foram racionados. Tínhamos de ir de madrugada a
Vila do Conde, que era longe, buscar um quilo de arroz ou um quilo de açúcar.
Não havia sabão, não havia nada, foi uma miséria terrível. E, nas fábricas de
conserva, as operárias eram revistadas à saída para não trazerem peixe .
Actividade Profissional
Foi aos 14 anos que arranjei o primeiro emprego, numa fábrica de conservas em
Matosinhos. Entrei como "rapariga das redes": ia buscar as redes com peixe e
levava-as às empreiteiras, aquelas que cortavam e enlatavam as sardinhas. Eram
elas que tiravam o toutiço às sardinhas, de forma a caberem em latas de quatro ou
oito.
Como não tínhamos contrato de trabalho, quando a nossa fábrica não metia peixe
- porque o achava caro ou não havia em quantidade suficiente - as raparigas das
redes e as empreiteiras não ganhavam um tostão. Mas eu, habituada àquele
regime da minha mãe, quando não havia peixe na nossa fábrica e ouvia o toque
de outras fábricas a pedir pessoas, ia logo trabalhar para essas fábricas. Trabalhei
num ror delas por empréstimo, era assim que se chamava.
Aos 15 anos passei a empreiteira. Tinha de ir buscar os cabazes em madeira,
pesados, e de os virar na mesa para, depois, cortar a sardinha, tirar-lhe a tripa e a
cabeça. Ganhávamos conforme os cabazes que cortássemos. Uma miséria. Na Conserveira Portuguesa trabalhava comigo outra rapariga de Labruge. Às
vezes ficávamos até tarde, porque tínhamos de deixar os peixes cortados e
temperados - para irem para a moura nos tanques -, metê-los nas grelhas e lavá-
los, para no dia seguinte serem enlatados. Tínhamos tanto medo de andar à noite!
Aquilo era tão "medroso" de Perafita para lá - havia uma extensão muito comprida
sem casas, muitas bouças. Passámos tanto medo!
Por isso, aos 19 anos mudei-me para o Adão Polónia, chamavam-lhe a fábrica
velha, também em Matosinhos, mas onde tinha muitas colegas que moravam à
minha beira. Assim já não íamos as duas sozinhas.
No Adão Polónia também trabalhava sem contrato, mas continuava a descontar
para o Fundo de Desemprego.
Só estive no Polónia até aos 20 anos, quando me casei e mudei para o Gargalo,
em Perafita. No Gargalo cheguei a dormir na fábrica, já grávida, porque tínhamos
de tratar do peixe de noite, às vezes até às 4 da manhã, para não se estragar. Durante 10 anos trabalhei em várias fábricas de conserva. Quando me casei, o
meu marido era pescador. Andava à sardinha e ao caranguejo, mas muitas vezes
vinha sem nada. Quando trazia caranguejos, era eu quem ia com a giga à cabeça,
a escorrer água por nós abaixo, vendê-los aos lavradores, que os usavam para
adubar as terras.
Ambos ganhávamos muito pouco. Por isso, a nossa boda de casamento foram
figos e regueifa. Naquele tempo a regueifa era cara, só a comíamos no dia de
Páscoa - era o que os padrinhos davam aos afilhados.
Tivemos dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Ambos fizeram a 4ª classe. Ele, aos
11 anos, foi para trolha, porque eu não o queria na rua. A ela, pu-la na costura,
não a queria nas conservas, queria-a mais estimada.
Três anos depois de casados, em 1948, o meu marido e eu fomos para a
EFANOR, a Fábrica dos Carrinhos. Primeiro fui eu - a minha irmã arranjou-me
emprego lá.
Comecei no armazém do fio, onde o fio era sacudido e enrolado em maços para ir
para as prensas. Pagavam mal, 7$00 por dia e 48 horas de trabalho por semana.
Quando passei a não diferenciada, subi para 13$00, o máximo que davam a quem
não trabalhava com máquinas.
Depois consegui meter lá o meu marido. Ele era tão ciumento que tive de o levar
para a minha beira. Foi para o armazém do pano - em frente ao meu- como
enfardador. Recebia 18$00 por dia.
Não havia aumentos, só me lembro de um, de 10 tostões por dia, quando lá foi um
ministro, julgo que o do Trabalho. Deram-nos esse aumento só para se "armarem".
Como era eu muito mexida, as minhas colegas aconselharam-me a pedir ao
encarregado trabalho na máquina de bonines. Com as pernas a tremer, lá fui falar
com ele. Consegui o que queria. Não me lembro quanto ganhava, sei que quantos
mais quilos fizesse mais recebia. Como era boa operária e trabalhava muito,
acabei por passar a controladora da secção de fiação fina. Na EFANOR havia creche para os filhos dos empregados. Tratavam das crianças,
davam-lhes de comer e andavam limpinhos. Os meus dois filhos não foram para
lá, foram criados com a minha mãe porque ela viveu sempre comigo.
Havia também uma cantina na EFANOR. Tanto eu como o meu marido comíamos
lá. Eu vinha para o emprego de comboio, ele de bicicleta, para poupar dinheiro. Nas eleições de 1958 toda a gente queria votar no general Humberto Delgado.
Toda a gente estava farta do Salazar. Foi a minha irmã, que tinha sido presa
várias vezes pela polícia política, assim como o marido, quem tratou de tudo para
nós podermos votar.
Humberto Delgado ganhou as eleições, mas fizeram tanta trafulhice! Não
deixaram contar os votos e meteram lá o Américo Tomás.
A seguir às eleições, houve uma greve na EFACEC. Começou no dia 23 de Junho
de 1958. A EFANOR também aderiu à greve.
Soubemos da greve na EFACEC uns pelos outros. E a minha irmã, que era levada
dos diabos, pôs-se à porta da nossa fábrica: "Vocês não entrem, ponham-se ao
lado da EFACEC e dos pescadores".
Lembro-me de ter ouvido um camarada dizer à minha irmã: "Se tudo correr bem,
está tudo bem, se correr mal vai muita gentinha ser despedida e presa". A minha
irmã foi presa.
Quando chegámos à fábrica, no dia 30, no fim da greve, soubemos que fôramos
despedidos. Despedidas sete pessoas por termos famílias políticas. Eu, o meu
marido, um sobrinho meu. Também uma rapariga da Cruz de Pau que namorava
um rapaz que estivera preso e uma colega da tecelagem - que na altura estava de
baixa - e cujo pai estivera preso. As colegas olhavam muito para o que ela dizia e,
por isso, mandaram-na também embora. De um dia para o outro, o meu marido e eu ficámos sem emprego. Como o marido
da minha irmã era encarregado na doca de Matosinhos e amigo de toda a gente,
arranjou trabalho para o meu marido na doca, a tomar conta das conservas e do
Vinho do Porto que iam para fora. Mas só lá esteve um mês, porque os
camaradas, sabendo que tínhamos sido despedidos, trataram de mexer os
pauzinhos. Da doca de Matosinhos foi para a EFACEC, ganhar 36$00 por dia.
Eu continuei desempregada, arranjei baixa durante sete meses. Depois tive de ir
trabalhar outra vez para a conserva, mas o que eu queria era ir também para a
EFACEC, porque lá o ordenado era certo. Estava sempre a pedir ao meu marido
para me arranjar trabalho lá, nem que fosse para a limpeza. Mas na EFACEC só
admitiam gente até aos 35 anos, e eu já tinha 36.
Nessa altura, o meu filho, então com 15 anos, trabalhava numa fábrica de
candeeiros no Carvalhido. Como eu ouvira dizer que na repartição da EFACEC em
Camões estavam a meter rapazinhos, fui lá pedir emprego para ele. O engenheiro
que me atendeu perguntou-me se eu era "aquela senhora que fora despedida da
Fábrica dos Carrinhos" e se eu nunca mais arranjara emprego ou se não
procurara trabalho. Expliquei-lhe a situação e ele perguntou-me qual tinha sido o
meu trabalho nos Carrinhos. Telefonou então, à minha frente, para a EFACEC na
Via Norte a saber se ainda havia uma vaga para os transformadores de medida.
Como não estava ainda preenchida, disse ao colega, também engenheiro, que
tinha ali à frente dele a pessoa ideal para o lugar. Desligou o telefone e disse-me:
"A senhora vem estagiar para aqui e depois vai lá para baixo, para junto do seu
marido". Mas, quando lhe agradeci e expliquei que tudo me parecia um sonho,
pois já quase perdera a esperança de ir para a EFACEC, atendendo aos meus 36
anos, ele respondeu-me "Então nada feito". A não ser que eu fosse falar com o
director. "Diga-lhe que esteve comigo e que eu disse que era a pessoa indicada
para esse serviço".
Levei a minha filha comigo, de 14 anos, mas pedi-lhe que não se mostrasse, para
eles não pensarem que eu era mais velha. O tal director já sabia do que se
tratava, mas não me deu qualquer resposta. Finalmente, passados uns dias, numa
sexta-feira, o meu marido telefonou-me a dizer que o engenheiro acabava de lhe
comunicar que eu podia ir ao médico para ser admitida na empresa.
Fui nesse mesmo dia ao médico e, na 2ª feira seguinte, apresentei-me ao
trabalho. Era tanta a minha ansiedade! Nem o encarregado sabia - não teve
tempo, sequer! - que eu ia para lá trabalhar. Fui ganhar 20$00 por dia -mais 4$00
do que o que pagavam aos estagiários - e entrei logo como efectiva, em vez de
esperar pelo fim do estágio. Acho que o engenheiro gostou de mim. Costumava
dizer-me "Nunca vi ninguém tão insistente como a senhora!". Mais tarde meteu lá
a minha filha no escritório. Inscrevi-a aos 16 anos, entrou com 19. Toda gente queria ir para a EFACEC porque sabíamos que era uma boa empresa,
mais moderna do que a maioria delas, e pagava bem. Tínhamos prémio de
produção, cheguei a tirar 150 horas de prémio num mês, o que era tanto como um
ordenado. Aquela casa foi a nossa salvação. Agora estão a indemnizar e a
mandar embora o pessoal com mais de 50 anos. Estive 23 anos na EFACEC. Primeiro em Camões, depois na Arroteia e finalmente
na Maia. Saí aos 57 anos com baixa. Reformei-me aos 60 anos.
Actividade Social e Política
Antes do 25 de Abril eu não tinha qualquer actividade política. Nem se podia falar
de política, se não íamos presos. Mesmo se apanhássemos um folheto no chão,
não o líamos na rua, só em casa. A minha irmã é que me contava tudo. O meu
marido ia muitas vezes a encontros de camaradas, eu era mais medrosa. O 25 de
Abril foi uma alegria. Depois do 25 de Abril eu queria andar no partido e, na EFACEC, tínhamos uma
célula de 200 e tal militantes. Reuníamo-nos aos sábados de manhã em Aníbal
Cunha. Ia a todas as reuniões, mas deixava o serviço de casa todo feito. Fazia-o à
sexta-feira depois do trabalho e ao sábado, antes de ir para a reunião. O meu
marido às vezes dizia-me "Deixa lá isso", mas eu é que não deixava o serviço por
fazer. Como tínhamos carro, ele então esperava por mim. Também nunca faltei a um plenário na EFACEC. E foram tantos nesses anos!
Quando fui para a Maia, vi que as mulheres que trabalhavam sob o domínio do
meu chefe não participavam nos plenários. Ele perguntava-lhe se iam ao plenário,
elas ficavam cheias de medo. Quando cheguei, ficaram todas contentes: "Ei, veio
a Rosinha, agora é que nós vamos".
Um dia o encarregado também me perguntou se eu ia ao plenário. Expliquei-lhe:
"Quero que saiba que não vou para chatear o senhor nem ninguém, vou porque
acho que é meu dever e de todos os trabalhadores que elegemos a Comissão de
Trabalhadores, saber o que eles têm para nos dizer".
As minhas colegas pediam-me para eu as chamar, mas nunca o fiz, se não diziam
que estava a incitá-las. E nem precisava de as chamar - saía do meu lugar e dizia
alto "Sr. Valdemar, vou ao plenário". Elas ouviam e também iam. Além dessas actividades, também pertenci ao Movimento Democrático das
Mulheres.
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