Geraldo Melo da Silva
Dados pessoais, infância, escolaridade
Chamo-me Geraldo Melo da Silva e nasci a 23 de Abril de 1923. A minha mãe
chamava-se Emília Melo da Silva, era coleteira, mas vinha de uma família
muito importante (o meu bisavô participava na Côrte). O meu pai era João da Silva.
Era filho de pai incógnito. A minha avó tinha terras em Barcelos, mas era
ama-de-leite e veio trabalhar para uma família de fidalgos do Porto. Abusaram
dela, nasceu o meu pai, e ninguém o perfilhou. Mais tarde veio a saber quem
era a família dele mas rejeitou-os. O fidalgo mandava dinheiro para sustentar o
meu pai, mas ninguém lhe deu educação. O dinheiro servia para sustentar uma
família de 5 pessoas. Muito cedo teve de trabalhar, num armazém, a puxar
carros-de-mão, mesmo depois de virem os carros a motor. Por isso também
morreu cedo, aos 47 anos. Morreu com gânglios nos pulmões.
Eu era o mais velho de 7 filhos. Nascemos no Bairro Tapada, no Passeio das Fontainhas,
e foi aí que eu vivi até aos meus 77 anos. Já antes lá tinha vivido o
meu avô e depois a minha mãe. Com este Inverno rigoroso a encosta começou
a cair e fomos obrigados a sair de lá. Agora moro nas Campinas.
Nós morávamos numa ilha entre as duas pontes, a Ponte de D.Luís I e a Ponte de D. Maria.
Eram umas vistas fabulosas, cheguei até a fazer uma cascatas
sobre aquelas vistas de Gaia.
Ainda fui estudar. A minha mãe sempre tomou conta de nós porque trabalhava
em casa. Nós íamos para a escola e depois para a brincadeira. Eu arranjei 3
compinchas que aquilo era só malandrice: íamos nadar para o rio, íamos
passear para os montes no Areínho... A minha mãe dava-me um grande
pedaço de broa, eu dividia com os outros dois, e lá íamos, a comer.
A primeira vez que tentei fazer o exame da 4ª classe chumbei e resolvi ir
trabalhar. Fui para alfaiate mas não gostei e disse à minha mãe que ia repetir o
exame. Ela concordou, eu voltei à escola e fiz o exame da 4ª classe, aos 14
anos.
Actividade Profissional
Quando interrompi a escola comecei por trabalhar numa alfaiataria na Rua de Santo Ildefonso.
A minha tarefa era perspontar, mas ganhava uma bagatela.
Eu já sabia algumas coisas porque a minha mãe era alfaiate, trabalhava em
casa.
Depois de terminar o exame da 4ª classe fui trabalhar para uma casa de
metalurgia, onde fiquei dos 15 aos 67 anos. Era a Dionísio Mateo, no
Bonjardim, perto da Estação da Trindade. Começou por ser uma casa de malas
e carteiras, e depois passou a trabalhar em fechos de correr. A casa era gerida
pelos próprios donos, que era uma família espanhola.
Fazia fechos de malinha de senhora. Eu comecei por soldar, e depois passei a
fazer os acabamentos. Nós tínhamos um ordenado fixo e, se produzíssemos
mais, começávamos a ganhar uma percentagem.
Na altura da 2ª Grande Guerra, como não vinha nada de fora, também
fazíamos cigarreiras. Eu também cheguei a fazer, e bonitas, umas douradas e
outras niqueladas. Bastou falhar um e eu, como não tinha trabalho fixo,
comecei a fazê-las. Para estampar as cigarreiras usávamos os balancés, que
eram um perigo, não tinham segurança nenhuma.
Foi nesta altura que o meu pai morreu, e eu fiquei, quase sozinho a sustentar a
família. Já ganhava melhor! O meu ordenado base julgo que já era 48$ por dia,
e eu era sempre o mais beneficiado. Foi também nessa altura que houve o
racionamento, nós tínhamos de ir para as bichas para arranjar pão e açúcar.
Nós trabalhávamos das 8h30 às 12h30 e das 14h00 às 17h30 ou 18h00. Se
trabalhássemos horas extraordinárias eles pagavam. Éramos uns 50
trabalhadores, homens e mulheres.
Quando apareceram os fechos de correr de nylon, a nossa produção baixou e
começámos a encomendar do estrangeiro, em rolos. Só cortávamos à medida
e fazíamos a pecinha que sobe e desce: primeiro em argolinhas, depois
começámos a pintar da cor do próprio pano...
Tive algumas chatices com os donos. Naquela altura era o Estado que
estipulava os aumentos, não eram os sindicatos. Então, lá, fazia-se os
aumentos no produto final e não se aumentavam os salários. Eu ia logo
reclamar e eles, passado uns meses, acabavam por fazer os aumentos a toda
a gente.
Uma vez fiz umas peças para casas de comércio, uns expositores para pôr em
cima do balcão. Nessa altura o patrão até me queria dar sociedade, mas eu
não aceitei. Quando a mulher dele soube da proposta que me tinha feito, veio
falar comigo, convencer-me a não aceitar porque a casa era a herança dos
filhos dela. Nessa ocasião cheguei mesmo a responder-lhe mal.
Ainda cheguei a ter uma oficina fora, por minha conta, mas só fazia fechos.
Podia ter contratado duas pessoas e fazia tudo, desde o fecho e a pele, até ao
produto final, o porta-moedas. Não fiz isso e acabei por ter de fechar a oficina.
Aos 23 anos casei, com uma vizinha, que era camiseira. Tivemos um filho que
morreu, com uma doença que dava muito às crianças na época. Ele andava
numa creche camarária na Rampa dos Padeiros, duas ruas travessas à frente
da Alameda das Fontainhas. Decidimos então que os nossos filhos não iriam
mais para creches, deixando a minha mulher de trabalhar para cuidar deles. De
qualquer forma, o dinheiro que ela ganhava era todo para pagar a creche.
Tivemos 10 filhos, mas só 6 sobreviveram. Hoje estão bem: tenho uma filha
que trabalha por conta própria, como esteticista, e outra que é empregada dela;
outro trabalhava no Costa Pina Vila Verde Cabral mas quando a empresa foi
para a Via Rápida recebeu 3.500 contos para rescindir o contrato, comprou
uma frota de barcos e montou uma escola para a miudagem; outro está a
trabalhar numa casa de peças de automóvel; outra é empregada; outra foi
trabalhar para Espanha, para casa do Cônsul, mas agora voltou, e tem
passado uns trabalhos.
Antes de falecer, o meu pai meteu-me a trabalhar no teatro, à noite, como
auxiliar. O meu trabalho era fazer subir e baixar os panos e cenários. Aquilo
funcionava por campainha e tínhamos um papel com as escalas. Comecei por
trabalhar na abertura do Coliseu e depois trabalhei no Sá da Bandeira, no
Carlos Alberto, no São João... Aquilo era quase sempre o mesmo empresário,
que contratava os artistas que queria, para os espectáculos que queria, e nós
íamos atrás para onde houvesse trabalho.
Mas era um esforço muito grande. Trabalhei lá dos 17 até aos 25 anos e deixei
o teatro de um momento para o outro. Às vezes havia peças novas e os
ensaios prolongavam-se durante toda a noite. Os artistas podiam dormir de dia
mas nós tínhamos de trabalhar logo pela manhã. Chegava a dormir apenas
uma hora por noite, depois ia para o trabalho cheio de sono e o patrão
reclamava porque não produzia tanto.
O que me levou a deixar o teatro foi um caso que ocorreu quando houve uma
confusão na mudança do horário da matiné de domingo no Sá da Bandeira.
Nós tínhamos o hábito de montar a cena e depois ir ao café, antes da abertura.
Naquele dia a matiné tinha sido antecipada e nós, os trabalhadores de cena,
não sabíamos. Já íamos a sair para o café e o ajudante-mestre veio avisar-nos
que o pau já tinha batido, devíamos estar nos nossos postos. O espectáculo
começou atrasado. Pouco depois apareceu o mestre, já o espectáculo tinha
iniciado, a insultar-nos pelo atraso e a mandar-nos embora. Ele não pensava
que fizéssemos isto, pensou que nos acanharíamos, mas toda a gente largou o
que estava a fazer e foi embora. O espectáculo não se realizou. Depois disto,
claro, não arranjei trabalho no teatro em mais lado nenhum.
Não senti muito a falta, ganhava-se uma bagatela, 7$50 por noite. E a minha
mulher não gostava que eu trabalhasse dia e noite. Embora não ganhasse
muito só a trabalhar de dia, eu era muito poupado. Dava para as despesas
todas, a primeira coisa que fazia era dar o ordenado à minha mulher, que
também muito poupada.
Depois do 25 de Abril, a patroa do Dionísio Mateo chamou-me e disse-me que
nos ia deixar a fábrica. Disse-nos que com o 25 de Abril os patrões tinham de
deixar as fábricas aos trabalhadores. Eu recusei logo, afinal ela ia levar o
dinheiro todo, assim não podíamos comprar matérias-primas. Disse-lhe para se
deixar de coisas, que o que nós queríamos era trabalhar e receber o salário ao
fim do mês, e assim continuou.
Actividade Social e Política
Antes do 25 de Abril nunca me meti em política. Havia movimentações mas era
tudo corrido à pancada. E eu pensava assim "Para quê? Não vale a pena...
levar porrada!"
Lembro-me das eleições mas aquilo era tudo uma fantochada. Ali já se sabia
quem votava contra, de maneira que havia muita gente que se ficava.
Depois do 25 de Abril entrei para o Partido Comunista Português, onde me
deram logo diversas tarefas. Estives responsável pelo Centro de Trabalho em
Mouzinho da Silveira, por distribuição e colagem de propaganda, por
segurança em diversas iniciativas, e muitas outras coisas. Ainda hoje tenho
tarefas.
Desde pequeno que faço cascatas: comecei aos 19 anos, e ainda hoje as faço.
Aprendi com o meu pai, ele é que gostava muito disso. As cascatas dele eram
de musgo, com uma casita e umas imagens. Ele fazia-as entre a janela,
ocupava metade da casa, mas dava um ambiente... um cheiro tão saboroso à
casa... As imagens ele comprava-as na Rua das Carmelitas, onde havia várias
casas que vendiam santinhos. Chegava a comprar peças completas, ele
gostava daquilo: o homem a matar o porco, barcos, pessoas à mesa com
canecas e tudo. Fazia a cascata no dia de São João e depois ficava ali a semana
toda.
O São João lá, no Bairro Tapada e no Passeio das Fontainhas, era a noite toda.
Vinha gente de todos os lados. Havia fogo e vinham rusgas das freguesias à
volta do Porto: Bonfim, Santo Ildefonso, Paranhos, Campanhã... Nas rusgas
usavam-se aqueles trajes à antiga, saia comprida até aos pés, blusas branca
ou coloridas, umas de cantarinhas de barro vermelho, outros iam de cestos...
também havia o homem da água. Enfim, cada um representava uma profissão.
Depois dançavam, porque traziam sempre uma orquestra atrás.
A minha família também ia em rusgas para o Senhor da Pedra, em Miramar.
Ainda era muito pequenino, devia ter uns 8 ou 9 anos. Íamos a pé para lá, a
cantar ao desafio, comia-se e depois cada qual voltava como quisesse, uns de
carro, outros a pé.
Para as cascatas já fiz a vista de Gaia, barcos, bacalhoeiros, a Igreja da Sé, a
Igreja do Bonfim, a Câmara do Porto, a Torre dos Clérigos,...
Uma vez a directora da escola primária da Rua do Sol pediu-me para fazer
uma cascata para lá. Eu fui e puseram-me a fazer os trabalhos ao fim da tarde,
todos os dias, para ensinar as crianças. Isto já eu devia ter uns 60 anos.
Devo demorar uns 3 meses a construir uma cascata. Começava quando
chegava aquele cheirinho a tília na Primavera, aromático. Agora não, por causa
das lixeiras e tudo mais, mas há uns anos aquilo era um cherinho...
Os materiais que utilizo são caixotes de madeira, de fruta, aquelas partes mais
limpinhas. Depois desenho as peças, serro-as, e limo as arestas, para ficarem
mais perfeitinhas. Gosto de demorar o tempo que for preciso para sair uma
perfeição. Se vejo que não está a ficar bem descolo e faço de novo.
Quando morava no Bairro Tapada guardava as minhas peças em cima dos
armários, mas agora já não tenho espaço, na nova casa nas Campinas, por
isso tive de deixar grande parte das peças na Associação de Moradores das Fontainhas.
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